Páginas

domingo, 26 de fevereiro de 2012

"Posfácio"

Posso dizer que essa foi a experiência mais intensa e única da minha vida! Foi um período onde vivi praticamente todas as emoções que um ser humano pode ter... um turbilhão de sentimentos e pensamentos.

Apesar de todo o planejamento para receber esse filho, a surpresa já apareceu logo de cara, com a notícia da gravidez, pois imaginávamos que ainda teríamos alguns meses de tentativas até termos êxito, já que a Kelly havia acabado de interromper o uso da pílula. Daí até completarem-se os três primeiros meses foi um misto de alegria, euforia, perplexidade... parecia que ainda estávamos meio anestesiados... parecia meio sonho, meio realidade... e a ausência da saliência na barriga, devido ao pouco tempo de gestação, da falta de movimentos do bebê, pois ainda era minúsculo, e também da falta de enjôos e mal-estares da Kelly, não nos faziam sentir que logo seríamos pais de verdade. Mas já estávamos curtindo muito a ideia e toda a novidade.

Quando recebemos o diagnóstico sobre o problema com o nosso bebê, parece que uma força puxou-me ao chão, me fazendo centrar em meu próprio corpo. E passados os primeiros momentos e dias de desespero, angústia, medo e tristeza, senti uma conjunção enorme entre meu corpo, coração, mente e espírito, mostrando que precisaria realmente estar inteiro, de corpo e alma, naquele momento de nossas vidas, principalmente para ser o arrimo sólido e confiável para minha querida esposa e para o filho que geramos. A cada dia, a cada palavra amiga, a cada prece e boa vibração, a cada reunião e passe recebido em nosso Centro, a cada encontro do grupo de terapia... sentia nitidamente o acúmulo de luz e boas energias em torno de nós, nos fazendo sentir fortalecidos e amparados o tempo inteiro. Acho que nunca estive tão perto de Deus, Jesus e da espiritualidade quanto nesse período. Lembro-me, em uma das sessões de passe que recebemos, de ter tido a imagem perfeita de uma mão gigantesca sendo estendida a mim, como se o próprio Mestre Jesus estivesse me dizendo “venha, meu filho! Eu estou aqui! Confie em mim! Você pode enfrentar tudo isso!”... E todas essas coisas nos faziam sentir cada vez mais confiantes em Deus, num tremendo exercício e teste para nossa fé. A certeza de que estávamos amplamente amparados por todos os lados e de que tínhamos feito a melhor escolha, que era a de deixar tudo acontecer conforme a vontade de Deus nos deixava com o coração leve e a consciência tranqüila.

Senti-me tão preparado e confiante, que consegui acompanhar a Kelly em todos os momentos, inclusive na sala de parto (que era um dos meus receios, antes mesmo da gravidez acontecer), pois eu sabia que a minha presença seria muito importante, reconfortante e necessária para ela.

Logo após o parto, fui chamado para uma outra sala, onde os bebês que nascem vão sendo recepcionados e acolhidos. Ainda no corredor, uma das médicas conversou comigo, confirmando o diagnóstico de todo o problema e que o coraçãozinho dele já estava batendo mais fraco, me dizendo que eles não iriam realizar nenhum procedimento de reanimação ou conexão com qualquer tipo de aparelho, pois tudo seria muito agressivo e sem muito sentido naquele momento, esperando assim que parasse de bater completamente. Entramos nessa sala e ela me conduziu até o berço onde estava o Miguel, todo peladinho e imóvel, mas ainda quente. Não conseguia parar de chorar, meu coração estava muito acelerado e sentia um enorme calor também. Era um sentimento ambíguo: a felicidade de ser pai e ver o filho pela primeira vez, mas a tristeza por toda a situação e por saber que já estávamos nos despedindo. Coloquei o dedo entre seus dedos, na esperança de algum pequeno aperto ou contato, e depois coloquei a mão sobre seu peito e só consegui dizer “Oi, Miguel! Eu sou o seu papai! Fica tranqüilo que vai ficar tudo bem...”. E logo sai para voltar a dar apoio à minha esposa.

Foram momentos extremamente paradoxais, que nos fizeram refletir e vivenciar a alegria e a tristeza, a vida e a morte, a angústia e a euforia, a certeza e o medo... Mas nada disso nos impediu de procurarmos dar o melhor ao nosso pequeno Miguel, de curtir toda a sua gestação, todos os momentos em que esteve conosco, através de músicas, fotos, conversas, carinho, afagos, brincadeiras, viagens, orações e tudo o mais que qualquer pai e mãe vivencia com seus filhos, independentemente das fases da vida ou do tempo em que passem juntos.

E acho que essa é a lição que devemos tirar de tudo isso: que estamos aqui de passagem, uns por mais, outros por menos tempo; mas que a vida é uma oportunidade única para aprendizados, experiências e, principalmente, a vivência do amor entre todas as pessoas. E, se esse amor puder ser incondicional, tanto mais perfeito será!

Aproveitemos o tempo para a construção de coisas boas, no caminho do bem, e sempre ligados a Deus, pois só Ele é quem sabe aquilo que é melhor para o crescimento de cada um de nós.

Temos a certeza de que o Miguel hoje está melhor do que antes, e pôde aproveitar da melhor maneira essa experiência única. Acredito, inclusive, que ele teve um grande merecimento, e foi poupado de maiores sofrimentos após o seu nascimento e desligamento. Para mim ficou a clara sensação de que ele “nasceu aqui e, logo em seguida, já nasceu lá do outro lado novamente”. E que possamos seguir o seu exemplo de coragem, luta e determinação...

Agradeço imensamente a todos os que nos apoiaram, de perto ou de longe, pessoalmente ou em pensamento, durante todo o processo ou depois dele e até agora, aos que estiveram do nosso lado todo o tempo ou só por alguns momentos. Que Deus os abençoe sempre!

Um pai feliz pelo dever cumprido.

Daniel Fermino Ribeiro

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Capítulo 18 de 18

Nascimento

Dia 12 de janeiro de 2010. Terça-feira. Nascimento do Miguel.

Fazia um calor danado, e logobcedo o sol já dava suas caras. Acordamos na hora prevista e sem maiores delongas começamos a nos ajeitar para seguir até o hospital. Tomei banho, conversei com o Miguel enquanto me vestia. Coloquei sandálias e um vestidinho verde bem fresquinho. Verde esperança. Peguei bolsa, malas e dei aquela última espiada pela casa para verificar se não estava esquecendo nada. Olhava tudo várias vezes como se quisesse ficar só mais um pouquinho em casa. E a vontade era de desistir, ficar ali, só eu, Miguel e Daniel pra sempre. Mas não tinha jeito, meu bebê tinha que nascer.


No caminho, passamos na casa da minha mãe para pegá-la. Meu pai tinha ido trabalhar e iria depois para o hospital. O caminho até lá foi silencioso. Chegamos e como em vários momentos na minha vida, entrei pisando com o pé direito. Para dar sorte. Fizemos a ficha e aguardamos a chamada na sala de espera. Não demorou muito, uma atendente chegou para nos conduzir até o quarto. Era no segundo andar, ao lado do berçário.

Ao entrar no quarto, nenhuma surpresa, tudo era bem arrumado, elegante, igual ao que tínhamos visto no dia da visita à maternidade. Enquanto esperava as orientações da enfermeira, tratei de personalizar o quarto. Coloquei o enfeite na porta, e fui preenchendo as lembrancinhas com a data do dia. Deixei para preencher no próprio dia por medo do Miguel resolver chegar antes e o cartão ficar com a data errada. Logo depois, a enfermeira-chefe chegou e me examinou. Fez uma série de perguntas elencadas em um questionário e pediu que eu aguardasse. Ficamos no quarto conversando, até que um tempo depois, ela chegou com o avental e solicitou que eu vestisse. Verificou minha toilette e novamente pediu que eu aguardasse mais um pouco. Nesse meio tempo, chegaram meus amigos Andrea e Erick, que vieram para dar força e desejar boa sorte. Nós conversávamos sobre amenidades enquanto minha mãe parecia bastante apreensiva. Pouco mais de uma hora depois, a enfermeira voltou trazendo uma cadeira de rodas para me levar ao centro cirúrgico. Naquele momento, meu coração acelerou e embora não quisesse transparecer, estava apavorada. Despedi-me de todos. Minha mãe me deu um abraço forte e o Daniel me deu um beijo de até breve, pois estaria logo mais comigo na sala de parto. Algumas pessoas chegaram antes que eu entrasse no elevador já no corredor da maternidade, mas lembro-me apenas da Juliana chegando com pressa para me dar um abraço. Levei comigo o carinho de todos.

Dessa hora até o nascimento do Miguel, minha memória embaralhou uma série de fatos, mas lembro-me de ter ido para outra sala de espera, onde ficam outras gestantes. Todas estavam com a indumentária característica, apreensivas, assistindo desenho animado na TV, único programa disponível naquela hora da manhã. Mas todas olhavam para a televisão com um olhar distante, como se aquilo não fizesse mais o menor sentido, e fosse apenas um paliativo antes de chegar a grande hora. Fiquei nessa sala um tempo. Muito tempo. Umas grávidas saiam e outras chegavam. E se eu já estava nervosa, essa demora me afligia ainda mais. Até que uma enfermeira veio me avisar que o Dr. José Domingos estava atrasado devido a uma emergência, mas estava a caminho. Assim, me transferiram para uma sala mais confortável, com maca, luz amena, onde pude deitar e descansar. Nessa sala, me aplicaram o cateter, por onde passaria o soro e todos os outros medicamentos. Havia outra moça na sala, que também esperava o seu médico. Embora cúmplices da mesma situação, não trocamos palavras, e no silêncio do quarto, podíamos apenas ouvir a respiração uma da outra.

Enquanto esperava, as enfermeiras vinham de vez em quando na sala, davam algum remédio, alguma orientação ou apenas entravam pra preencher alguma coisa nas suas fichas. Em uma dessas vezes, vi uma delas cochichando com a outra, e mostrando algo na ficha. A outra se espantou e fez cara de lamento. Percebi que falavam de mim e do Miguel. Senti vontade de chorar e de que tudo fosse diferente.

Após alguns cochilos, a assistente do Dr. José Domingos chegou, se apresentou e disse que em alguns minutos subiríamos para o centro cirúrgico. Não demorou muito e as enfermeiras me conduziram até lá. Ao entrar, me espantei ao ver uma sala pequena, diferente daquilo que eu imaginava ser uma sala de parto. Já havia algumas pessoas no local junto com o meu médico, eram os anestesistas e assistentes. Falavam de amenidades, davam risada e brincavam um com o outro. Era uma forma de deixar o momento mais relaxado. Eu sentia vontade de dizer um monte de coisas, fazer quase uma sessão de terapia, mas minha garganta estava travada e eu não conseguia fazer nada além do que eles me orientavam. Queria falar, queria gritar, queria sair correndo, mas também queria ficar e ver a carinha do meu bebê.

O anestesista pediu para que eu sentasse em determinada posição na maca para que ele pudesse aplicar a injeção. Um assistente ficou na minha frente, pediu que eu abaixasse a cabeça e dobrou os braços para me servir de apoio enquanto eu tomava a anestesia. Não doeu, mas foi uma sensação bastante estranha, incômoda. Deitei e senti que os médicos arrumavam o avental, os tecidos, os equipamentos. Comecei a ficar apreensiva, pois parecia que tudo estava começando, sem que eu soubesse e que o Daniel estivesse comigo. Prenderam meus braços e colocaram um tecido na frente do meu rosto. Só então, vi o Daniel entrando pela porta. Parecia um deles, vestido de azul, de toquinha e máscara. Mas o reconheci pelos olhos, bem característicos. Era finalmente, um semblante familiar.

A sua entrada anunciava que era chegada a hora. Tudo preparado, era a hora do Miguel nascer. Já não sentia mais as minhas pernas, estavam pesadas, imóveis. Mas sentia um frio absurdo, de tremer o queixo. Achava que era do ar condicionado daquele ambiente frio e cheio de metal, mas soube depois, que era efeito da anestesia. Foram momentos de muita aflição. Sentia o Daniel segurando a minha mão, mas tremia muito, e aquele pano na minha frente me causava falta de ar. Comecei a ficar ofegante, agitada, mas não podia nem me mexer e nem mexer meus braços. Perguntei várias vezes se já tinha começado, e o Daniel não soube responder. Perguntei várias vezes se o nosso bebê já tinha nascido, e o Daniel dizia que não. Vi o anestesista injetando mais algum remédio no soro, e eu comecei a ficar mais zonza. Tinha a sensação de dormir e acordar em frações de segundo. Queria estar atenta ao menor sinal do choro do Miguel. Entre uma apagada e outra, senti um assistente empurrando a minha barriga por cima de mim. Depois, lembro-me apenas do Dr. José Domingos dizendo:

- Vou ter que puxar pelas pernas...

Depois disso, apaguei.

Depois desses momentos de aflição, lembro-me de acordar na sala de repouso. Estava em outra maca, sozinha, e vi apenas uma poltrona do lado direito na direção dos meus pés. Todo o meu corpo estava pesado, inclusive minhas pálpebras que insistiam em fechar meus olhos. Era uma sensação de cansaço misturado com moleza. Havia apenas silêncio. Não tinha ainda notícias do que havia acontecido. Entre um pequeno cochilo e outro, vi uma enfermeira entrando pela porta e se aproximando de mim. Vagarosamente e com uma voz doce, ela disse:

- Kelly, seu bebê já não está mais conosco. Sinto muito.

Eu sabia muito bem o que aquilo queria dizer. Em silêncio, fiz apenas um sinal com os olhos e com a cabeça aceitando a notícia. Ela continuou:

- Você quer vê-lo?

Não tive a menor dúvida e respondi que sim.

Ela saiu da sala, demorou alguns eternos minutos e voltou. Trazia em seu colo o bebê mais lindo do mundo. Era o Miguel, pequenino, de toquinha na cabeça e todo enroladinho com uma manta do hospital. Ainda inchado, eu pude perceber suas ruguinhas, características de qualquer recém-nascido. Deitada, perguntei se poderia beijá-lo. A enfermeira o aproximou do meu rosto e eu pude encostar meus lábios na sua bochecha, dando um beijinho estalado. Fiquei ainda algum tempo olhando pra ele, quieta, admirada, e morrendo de orgulho do meu pequeno guerreiro. Antes que a moça o levasse de volta, pedi para dar outro beijo nele, desta vez de despedida.

Nosso encontro fora da barriga foi rápido. Embora eu soubesse que ele já estava bem distante dali, o contato com os seus olhos, com seu nariz, com sua boca igual ao do Daniel e seu corpinho diminuto, me trouxe à realidade e me fez perceber que apesar de toda a nossa comunhão, ele era um ser único, independente, que vivia a sua própria história. A única e importante história que ele poderia viver. A sensação que ficava era a de leveza. De missão cumprida. E apesar da dor, de final feliz.

Nessa história, apesar de toda a intensidade e saudade, não há arrependimentos. Tenho certeza que fiz o melhor, tudo o que estava ao meu alcance. Fui muito feliz gestante e sou feliz em ser mãe. Para não dizer que não me arrependi de nada, houve sim, um único arrependimento. Naquele momento, enquanto eu me refazia na sala de recuperação pós-parto, ainda meio grogue da anestesia, arrependo-me de não ter pedido para pegar o Miguel no colo e ter cantado para ele.

Apesar disso, eu sei que ele teve uma partida doce e calma, como a canção.

Vem a noite, doce e calma
Doce e calma
Din Don
Din Don
Din Don


Kelly Cecília Teixeira

Meu bebê viveu bravos 48 minutos. Foi registrado com o
nome de Miguel de Jesus Teixeira Ribeiro. Foi sepultado dignamente no Cemitério
Público da Vila Alpina. No dia da sua despedida, o céu de São Paulo recebia um
lindo arco-íris de presente, que era possível avistar da janela do quarto da
maternidade. Imagem de alegria e esperança.



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Capítulo 17 de 18

Licença

Como de direito, aos 08 meses de gestação, solicitei a minha licença-maternidade. Ao contrário de outras mães que preferem deixar a licença para quase bem perto do parto, para poder aproveitar melhor o tempo do benefício com os seus bebês, eu achei melhor sair antes. Primeiro, porque no auge do verão, não só meus pés estavam inchados, mas meu corpo todo, o que me causava bastante mal estar. Segundo, a barriga, enorme, tanto pelo período avançado da gravidez como pelo aumento do líquido amniótico, já previsto, me cansava e me atrapalhava nos afazeres do trabalho. Já era difícil e perigoso dirigir. Com o pé bem nas minhas costelas direitas, Miguel era, sem saber, causador de fortes dores nessa região e também nas costas. Como diria minha avó, eu estava naquele estágio em que as grávidas ficam parecendo uma “pata choca”.
Andava de perna entreaberta e apoiava a mão na cintura. Precisava de ajuda pra sentar, pra levantar e pra colocar sapato. Era, muitas vezes, motivo de chacota. Uma delícia.

Mas para além das dificuldades de locomoção, respiração, inchaço e calor, percebi que meu tempo com o Miguel estava chegando ao fim. E portanto, eu não só gostaria, como na verdade precisava, ficar mais tempo com ele. Ter com ele dedicação exclusiva.

Embora eu ame o que eu faço e meus amigos de trabalho tenham me apoiado o tempo todo, seja profissionalmente seja emocionalmente, eu sentia que precisava desse tempo a sós. Só nos dois.

Nesse último mês, nossa relação que já era intensa, se aproximou ainda mais. Entretida somente com a gestação, podia sentir cada movimento, cada chute, cada soluço. E com toda a calma que me era disponível, eu parava o que estivesse fazendo para senti-lo. Para conversar com ele. Para cantar. Pela manhã, repetia o ritual de sempre, desejando-lhe bom dia, e depois do banho, passando meus cremes de costume. Mas agora era um outro tempo, mais vagaroso, mais atencioso, mais silencioso. Dava-me o luxo de desperdiçar bons minutos deitada na cama tomando um banho de sol que chegava pela janela.

Durante o dia dividia meu tempo entre o computador, a televisão ou algum livro. Foi ótimo ficar em casa, sem nada pra fazer, sem precisar dispensar nenhum esforço exagerado, e poder ajeitar minha coluna entre almofadas e travesseiros. À noite, com a chegada do Daniel, preparava uma comidinha
modesta, daquelas que qualquer moça moderna (não) sabe fazer, e era ótimo ter a família reunida em casa. Ao menor sinal de distração, Miguel dava sinal de vida, interrompendo nossa conversa ou uma cena na TV com uma cambalhota (que se não era uma, parecia! Tamanha a distorção no formato da minha barriga...).

Eu não sabia o que poderia acontecer com o Miguel depois do parto, mas a sensação era a de que cada dia a mais, era um dia a menos. Por isso, a vontade era de esticar o tempo, torcer assim como a gente torce uma roupa a fim de espremer a última gota, ao máximo, quase até arrebentar. Cada segundo com ele era especial, era uma alegria, era entender o milagre da vida.

Mas o tempo, como diria Mário Quintana, “não pode viver sem nós, para não parar. E todas as manhãs nos chama freneticamente.” Assim, era chegado o dia do parto.

Kelly Cecília Teixeira

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Capítulo 16 de 18

Enxoval

Desde que soubemos do diagnóstico, não ganhamos nem compramos mais nenhuma peça do enxoval. Mantivemos apenas aquelas que ganhamos no início da gestação. Eu mesma tinha comprado apenas um macacão, que como mãe de primeira viagem passava longe do tamanho certo para um recém-nascido. Era até engraçado.


Ao se aproximar o momento do parto, além dos questionamentos naturais, pertinentes a qualquer gestante, eu carregava outras dúvidas, aquelas peculiares ao nosso caso. Por exemplo: o que levar para a maternidade? Tanto na minha mala, quanto na mala do Miguel? Mas o Miguel não tinha mala... Não adiantava seguir as listas de dicas fornecidas na internet ou em lojas especializadas. Não era necessário ter fraldas, nem muitas roupas... Mas ao mesmo tempo, não havia previsão de quanto tempo o Miguel ficaria com a gente. E se nesse tempo, fosse necessário comprar mais coisas? Havia ainda a esperança que o quadro fosse revertido! E comentávamos: “se ele sobreviver, teremos que correr pra completar o enxoval! Mas será a corrida mais gratificante das nossas vidas!”

Para uma mãe, uma das coisas mais deliciosas da gestação é justamente preparar o enxoval. Preparar o quarto. Fazer chá de bebê. Mas durante muito tempo tive um bloqueio, tinha medo de fazer tudo isso sem saber se o Miguel aproveitaria. Não sabia nem se ele viria para casa. Tudo era uma grande hipótese. Possibilidades.

Conforme foi chegando mais perto do parto, algumas barreiras foram sendo quebradas e tive vontade de entrar em uma loja de bebês. Considerei o que seria o tempo de permanência na maternidade. Verifiquei o que eu já tinha, e o que faltava. Escolhi coisas específicas de menino, pois as coisas que ganhamos eram neutras, foi antes de sabermos o sexo do bebê. Fiquei encantada com os macacões de surfista ou “playboyzinho”. Compramos também uma manta, para enrolá-lo e deixá-lo bem protegido. E compramos a mala de maternidade do Miguel, verde, com estampa de urso, pra combinar com o Teddy, que esteve sempre presente no seu quarto.

Preparei também a minha mala. Nesse caso não tinha muito segredo. Eram camisolas, penhoir, chinelo, absorventes, produtos de higiene pessoal. Comprei também um sutiã com abertura frontal: e se eu pudesse amamentá-lo? Comprei absorventes para o seio, caso o leite escorresse. Encomendei uma cinta, pra manter uma firmeza no corpo depois da cesárea. Era isso, nada demais.

Preparei também lembrancinhas para entregar às pessoas que nos visitassem no hospital ou em casa. Era um pequeno cartão, com um ímã no verso, e na frente tinha uma imagem de um anjinho e a oração do Santo Anjo do Senhor:

“Santo Anjo do Senhor,
Meu zeloso guardador,
Se a ti me confiou a piedade divina,
Sempre me rege, me guarde,
Me ilumine. Amém.”

E logo embaixo, os dizeres:

“Miguel e seus pais agradecem a visita”

Além das lembrancinhas, montei também o quadro de boas vindas para pendurar na porta da maternidade. Fiz tudo de forma artesanal. Pintei o quadrinho, colei uma moldura rococó nas bordas e fiz uma composição com papéis coloridos e a oração do Santo Anjo pra colocar na parte de dentro. Para arrematar colei um bonequinho em forma de anjo próximo da oração. Ficou uma graça.

Deixei tudo preparado para o grande dia. Mesmo faltando pouco mais de um mês para o parto, quis deixar tudo arrumado, pois além de tudo, uma das possibilidades era um parto prematuro. Pedi ajuda para a minha mãe ao lavar as roupinhas do Miguel. Sabia que tinha de ser uma lavagem especial, sem produtos químicos para não causar alergia na pele do bebê. Depois de seco e passado, arrumei dentro da mala, cuidadosamente, sem esquecer de nada. Esses momentos que antecederam a ida ao hospital, quando comprei as peças de roupa ou quando preparei as lembrancinhas e o quadrinho, foram poucos, mas intensos. Foram momentos que despendi todo o cuidado em escolher cada cor, cada papel, cada tecido, cada botão que pudesse demonstrar ainda mais o meu amor pelo Miguel. Era como se a cada detalhe, eu colocasse toda a minha energia de mãe. Toda a energia daquela que cuida. Confesso que queria ter feito muito mais. Queria ter comprado todos os enfeites do quarto, todos os utensílios para a alimentação, todo o kit de banho, todos os itens de segurança. Mas fiz tudo o que era possível fazer. E fiquei satisfeita com isso.

Kelly Cecilia Teixeira

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Capítulo 15 de 18



Eu acho que eu nunca havia me aproximado tanto da espiritualidade quanto nos meses que se sucederam até o nascimento do Miguel. Talvez esse tenha sido um dos maiores aprendizados. A sensação de que eu estava mais perto de Deus, segurando na mão de Jesus era muito forte. Muito forte.


Da mesma forma, todas as pessoas que estavam a minha volta, exprimiam sua fé inabalável e me davam muita força. Muitas diziam o que eu já sentia: “Deus não faz cair uma folha no chão se não for da Sua vontade”. Eu tinha certeza disso e me consolava toda vez que me lembrava dessa frase.

Recebemos muitas mensagens de apoio, de orações, de boas vibrações. Parecia que era formada em torno de nós uma corrente do bem, só com boas energias, independente de religião. De uma amiga católica recebi um frasquinho com água benta, pra beber e passar na barriga. Obedeci. De outra, evangélica, recebi um vidrinho de óleo ungido, que também era pra passar na barriga e consagrar “Em nome de Jesus”. Passei o óleo todos os dias até acabar. Da minha mãe, que tem formação católica, mas à época freqüentava outra corrente da igreja evangélica, recebi duas toalhinhas com dizeres cristãos. Era pra colocar embaixo do travesseiro e junto das roupinhas do bebê. Coloquei. Nossos nomes eram escritos em listas de missas católicas, cultos evangélicos e reuniões espíritas. Não tinha como não nos sentirmos protegidos.

Embora aceitasse todas as boas vibrações, só conseguíamos realizar com regularidade o tratamento espiritual na casa espírita Caminheiros do Amor, dirigida pela Gilvete. Toda quinta-feira estávamos lá pra ouvir a palestra e tomar o passe. Muitas vezes me emocionei com as lições ensinadas. Parecia que todas faziam sentido pra mim e pra nossa história.

Em uma determinada semana, ao sair da sala de passe, a Gilvete me segurou pelo braço e sussurrou no meu ouvido:

- Venha mais cedo na semana que vem. Tenho uma boa notícia para você.

Arregalei os olhos, dei um sorriso e me despedi discretamente para que ela continuasse o trabalho. Peguei nas mãos do Daniel e ao contar pra ele o que ela havia me dito, ficamos ambos morrendo de curiosidade. Mas teríamos que aguardar até a outra quinta-feira pra saber o que se passava.

Antes disso, no domingo, ao ligar pra minha mãe tive uma bela surpresa. Por telefone mesmo ela me contou que uma prima do meu pai tinha uma proposta:

- Desde que soube do seu caso, a Sandra vai especialmente às terças-feiras orar por você, pelo Daniel e pelo Miguel, junto com o pastor da igreja que ela freqüenta.

E eu respondi:

- Puxa, que bom, agradeça a ela por mim!

- Ah, sim. Pode deixar. Mas ela gostaria de ir orar na sua casa! Eu comentei com ela que você é de outra religião, mas imaginava que não se oporia.

- Claro que não! Toda prece é bem vinda.

- Foi o que eu imaginei. Então, eles fizeram essa proposta porque nessa semana, o pastor chamou a Sandra de lado e disse que tinha uma boa notícia.

Quando minha mãe disse aquela frase, lembrei-me das palavras da Gilvete e sem que ela terminasse meus olhos encheram-se de lágrimas.

- Sim, mãe. Qual é a boa notícia?

- O pastor disse que tem sentido algo muito bom, possivelmente um milagre!

As lágrimas que ainda estavam nos olhos, escorreram pelo rosto, minha voz embargou e meu braço tremia. Não sabia nem o que dizer. Somente respondi à proposta:

- Que bom, mãe. Pode marcar a reunião aqui em casa.

Antes do dia marcado, nós tínhamos nossa reunião semanal no Caminheiros do Amor. Conforme combinado, cheguei antes da palestra para conversar com a Gilvete. Curiosa, fui logo perguntando qual era a boa notícia. E ela explicou:

- Todos nós temos nossos mentores e amigos que atuam no plano espiritual em nosso favor, basta estarmos numa boa sintonia. E vocês estão. Vocês demonstram resignação e bondade para com o Miguel e com a situação, e por isso permitem que o plano espiritual os ajude. Na semana passada, nós sentimos uma luz muito intensa e uma mensagem de que essa ajuda pode até interferir no plano físico.

O plano físico significava a matéria, significava meu corpo e o corpo do bebê. Não contive a emoção e contei o que o pastor, que não conhece a Gilvete e é de outra religião, disse à prima do meu pai. E ela, como sempre muito amorosa, completou:

- O plano espiritual age independente de religião. Por isso, o que nós sentimos, assim como o pastor, é tão verdadeiro.

Embora soubéssemos que era muito difícil ter um erro no diagnóstico de anencefalia, naquele momento, uma pontinha de esperança começava a surgir. E se o quadro fosse revertido?

No dia marcado para a oração, recebemos o pastor, sua esposa, a prima do meu pai e meus pais na minha casa. Estava sem graça, não sabia o que dizer e por isso fiquei em silêncio. Mais ouvia do que falava. Sem muitas delongas, o pastor abriu a bíblia e leu algumas passagens da vida de Jesus. Entre uma frase e outra dizia “Amém?” em tom de pergunta, como se quisesse saber se aquilo fazia sentido para nós. A vida do Cristo é linda, e não há como não tirar importantes ensinamentos dela. Mas quando ele começou a aplicar suas lições ao nosso caso, à nossa história, foi impossível não se emocionar. Eu, que tentava prestar atenção às suas palavras, não me contive e comecei a chorar. Naquele momento, ele acelerou a fala, aumentou o tom de voz, levantou-se do sofá e veio na minha direção. Com uma mão ele segurava a bíblia. A outra ele colocou sobre a minha cabeça e falava cada vez mais intensamente. Pedia o milagre. De repente, não falava mais português. Segundo os evangélicos, era a língua dos anjos. Ou ainda, a língua que Jesus falava. Nesse momento de fervor, todos começaram a orar em voz alta, de olhos fechados. Cada um com as suas palavras, mas todos ao mesmo tempo, o que aumentava a catarse daquele ritual. Eu só conseguia chorar. No meio daquele barulho, o pastor falava com a mão sobre a minha cabeça e a sua esposa passava óleo ungido na minha barriga e nos meus pés, que àquela altura da gestação já estavam bem inchados. Aos poucos, o ritmo das preces foi diminuindo, até cessar. Eu já estava mais calma e podia respirar melhor. Ao nos despedirmos, só consegui agradecer.

Nas semanas que se passaram, eu continuava orando para o meu bebê, passava óleo ungido na barriga, fazia o tratamento espiritual no centro. Tinha esperança pelo milagre, mas se ele não viesse, amaria o meu filho da mesma forma.

Kelly Cecilia Teixeira

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Capítulo 14 de 18

Terapia

Apesar de estarmos bem, curtindo a gestação e tendo acompanhamento espiritual e médico, era importante que procurássemos ajuda psicológica. Tanto para saber lidar com as situações do dia-a-dia, como para nos preparar para o nascimento do Miguel. Por mais que soubéssemos o que poderia acontecer, era importante trabalhar a questão do impacto desse momento nas nossas vidas. Por isso, por indicação de uma psicóloga amiga, da casa espírita Caminheiros do Amor, a Dalcler, procuramos o Instituto Evoluir, um espaço que propõe uma abordagem integral em torno do ser humano.


Inicialmente marquei uma triagem, sozinha. Mas o Daniel também estava interessado em iniciar qualquer que fosse o acompanhamento. No dia agendado, fomos eu e Miguel para a consulta. Quem nos atendeu foi Eunice, uma das psicólogas da equipe. Simpática e atenciosa, ela me levou pra conhecer todos os espaços e contou um pouco sobre o trabalho do Instituto. Era um lugar bonito e confortável. Trazia uma energia boa, de aconchego. Logo me senti em casa.


Na sala de consulta individual, sentamos uma de frente pra outra e depois de eu ter dito que nunca havia feito terapia, contei o que se passava. Eunice se mostrou bastante sensibilizada, e diante do meu caso, bastante complexo, não queria indicar logo de cara de que forma se daria o tratamento. Lá, eles trabalham com consultas individuais e em grupo. Disse que ia conversar com o restante da equipe para refletir sobre a melhor forma de conduzir o acompanhamento e que entraria em contato comigo.

Alguns dias depois, ela me ligou e pediu para que eu fosse na sexta-feira de manhã participar do grupo, e que eu falasse com a Del Mar. A notícia de participar do grupo me deixou um tanto receosa, afinal, eu nunca tinha feito terapia, e logo de cara começar em um grupo? Não saberia como reagir ao falar das minhas questões e ouvir os problemas alheios. Como seria a recepção do grupo? Será que eu não ficaria tímida e envergonhada na frente de outras pessoas? Enfim, até o dia marcado, muitas questões passaram pela minha cabeça, mas resolvi comparecer mesmo assim.

Na sexta-feira de manhã, cheguei, me apresentei na recepção e pedi pra falar com a tal da Del Mar. A recepcionista pediu que eu aguardasse na sala de espera, que logo ela me chamaria. Estava com frio na barriga. Ao observar o movimento, percebi que a moça com quem eu deveria falar tinha passado pela recepção e voltado para o interior do Instituto umas duas ou três vezes. Tinham se passado pouco mais de 10 minutos, mas aquele vai e vem e a ansiedade foram me consumindo de tal forma, que tive muita vontade de chorar ali mesmo na frente de todo mundo, mas me controlei até que ela me chamasse.

Quando ouvi meu nome, levantei correndo e tremendo. Entramos na primeira sala do corredor, que estava à meia luz e tinha um cheiro gostoso de incenso. Del Mar tirou a bota e colocou uma meia em formato de sapatilha e explicou que para entrar na sala de atendimento ao grupo era preciso tirar o sapato.

Simpática, disse que a Eunice já havia comentado sobre o meu caso, mas queria ouvir um pouco mais de mim. Antes que eu começasse a falar, todo aquele choro preso na sala de espera veio à tona e eu não me contive. Entre uma lágrima e outra, consegui falar um pouco. Ela ouviu atenciosamente, me ofereceu lenços de papel, disse que eu ia gostar do grupo e me convidou pra subir.

Na sala de atendimento coletivo já estavam várias pessoas. Era uma sala confortável com carpete e almofadas no chão. Homens e mulheres, jovens e velhos. Todos foram bastante receptivos antes mesmo que soubessem quem eu era e o que estava fazendo ali.

Del Mar deu bom dia a todos e me apresentou a Tereza, a outra psicóloga que auxilia na condução dos trabalhos. Ambas propuseram uma atividade inicial de relaxamento, fizeram a “chamada”, comentaram sobre amenidades para só então começar o papo sério. Antes que a pessoa indicada naquele dia começasse a sua colocação, Del Mar pediu que eu me apresentasse ao grupo e contasse um pouco do meu caso.

Arregalei os olhos, tomei coragem e comecei a falar. Não consegui terminar a frase. Abaixei a cabeça, levei as mãos aos olhos e desabei a chorar. A sala ficou em total silêncio por alguns segundos e foi quebrado apenas por uma moça que estava sentada do outro lado da sala, mas na minha frente. Quando ela começou a falar, levantei a cabeça, fiquei quieta, apenas enxugando as lágrimas que escorriam. Ela estava grávida e vestia uma túnica amarela linda.

- Kelly, meu nome é Rosana. É um prazer conhecer você. Quero te contar que eu também já passei por isso. Há alguns anos nasceu a minha filha Amanda, com um problema parecido com o do seu bebê. Ela viveu dois dias e foram os dois dias mais felizes da minha vida. Agora, estou grávida do Leonardo, e está tudo bem com ele.

Estava atônita. Era uma surpresa conhecer alguém que sabia o que eu estava sentindo, porque já tinha sentido antes. As suas palavras foram como bálsamo tanto pela força que transmitia como pela esperança de ter outros filhos. Antes que eu respondesse algo, ela continuava:

- Quando cheguei aqui, estava mais desesperada que você. E dizia que nunca mais queria ter filhos. Mas foi com a ajuda do grupo e em especial de uma amiga muito querida que eu consegui superar tudo isso. Ela se chama Adriana, e teve a Rafaela, que viveu 25 dias. Vou te dizer a mesma coisa que ela me disse quando cheguei aqui... “Imagina uma rua bem movimentada. Nessa rua tem um buraco bem grande e o Miguel caiu nele por qualquer motivo. De lá, ele fica gritando por socorro, mas ninguém o ouve. Todo mundo está bastante atarefado e nem sequer olha na direção do buraco. Até que você chega perto e é a única a estender a mão para ele”. Pensa nisso.

Com aquelas palavras, eu fui me acalmando e consegui dar mais alguns detalhes sobre o nosso caso. Do outro lado da sala, outra moça interveio:

- Kelly, saiba que o Miguel te agradece muito pela oportunidade.

Todos estavam bastante emocionados, e olhando nos olhos de cada um pude sentir o carinho e as boas vindas que emanavam.

A sessão continuou normalmente, com colocações de mais três pessoas, e embora eu tivesse horário para ir trabalhar, acabei ficando até o final. Entre uma colocação e outra, a Rosana veio sentar do meu lado e ficamos cochichando um pouco. No final, foi irresistível trocarmos nossas experiências. Ficamos conversando mais de uma hora além do término da terapia. Sentia-me aliviada. E achei ótimo ter conhecido aquele grupo.

Na semana seguinte, outra “coincidência”. A Adriana, a moça cuja Rosana tinha comentado, apareceu para visitar o grupo depois de muito tempo. E não foi sozinha. Levou o filho Juan Carlo, de dois anos, irmão mais novo da Rafaela. Foi uma alegria geral. Não só eu, mas várias pessoas do grupo também não o conheciam. Ficamos em um cantinho da sala cochichando, junto com a Rosana, que também estava lá. Pra mim, era o exemplo de mais uma história bem sucedida. Ambas tiveram suas filhas na mesma condição do Miguel e hoje não só estavam bem de saúde, como tiveram outros filhos. (No caso da Rosana, por chegar). Ter contato pessoalmente com essas mulheres foi uma injeção de ânimo na minha caminhada.

A cada semana, me sentia mais confiante e acolhida pelo grupo. Foram momentos de muito aprendizado.

Kelly Cecilia Teixeira

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Capítulo 13 de 18

Lista de nomes
 
Ainda sem saber o sexo do bebê, a lista de nomes e de combinações ia crescendo. Se fosse menina, Alice, Clarice, Clara, Lara, Lorena, Maria Clara, Luiza, Maria Luiza, Ana Luiza, Sofia, Natália, Manoela e tantas outras. A lista de meninos era menor, mas igualmente diversificada. Antônio, João, João Pedro, Pedro, Felipe, Tiago, Rafael, Miguel, Vinícius.

Era uma delícia ficar combinando nome e sobrenome e ouvir como soava. Além disso, preferíamos aqueles que ainda não tivesse na família ou na turma de amigos mais próxima. Pra ter certeza do sexo e escolher definitivamente tínhamos que esperar até o próximo ultra-som, que não estava tão longe. Mas a ansiedade era grande. Além disso, seria a primeira ultra-sonografia depois do diagnóstico. Queríamos saber como nosso bebê estava.

Com uma gestação de aproximadamente 21 semanas, fomos fazer o exame. Estávamos eu e o Daniel. Tomei o cuidado de marcar no mesmo dia e horário que o Dr. Leonardo atendia de costume. Além dele já conhecer o caso e ter sido muito gentil conosco, era uma forma de evitar questionamentos de outros médicos.

Já dentro da sala, meu coração acelerou e eu respirei fundo. Deitei na maca, me ajeitei e logo o doutor entrou. O DVD já estava posicionado pra gravar e começamos:

- Como havíamos previsto, a acrania evoluiu para anencefalia. Já podemos perceber os danos causados no sistema nervoso central. A face está em batráquio, uma das características da anencefalia. Isso significa que devido à falta da calota craniana, os olhos podem ficar um pouco saltados. De resto, me parece que está tudo bem. Os outros órgãos se desenvolvem normalmente e a quantidade de líquido amniótico está normal para o período. Agora vamos ouvir o coração.

Tum-Tum, Tum-Tum, Tum-Tum...

O coração dele batia acelerado. Parecia estar feliz com o nosso reencontro. E a gente respirava num suspiro profundo. Quanta felicidade! Eufóricos, nós ríamos com cada movimento que ele fazia.

Eu não contive a curiosidade:

- Doutor, já dá pra saber o sexo?

- Humm, vamos ver...

Ele procurou um pouquinho, apertou minha barriga de lá e de cá, quando aproximou a imagem no visor, deu uma pausa, e escreveu letra por letra:
 
S-E-X-O – M-A-S-C-U-L-I-N-O
 
Não tínhamos preferência por sexo, mas quando soubemos que era um menino ficamos radiantes. Queria gritar pro mundo inteiro: “meu filho é um meninooooo”. Naquele momento, a anencefalia era um detalhe, o que importava é que ele estava bem protegido dentro de mim. E que era o meu menino.

Já no carro, voltando pra casa, ainda meio em silêncio transbordando com a boa surpresa, questionei:

- E aí, já podemos escolher o nome...

E o Daniel, com um sorriso de orelha a orelha, respondeu:

- Sim, o que você acha?
- Eu tenho uma sugestão. Pode ser Miguel?
- Claro!


Pronto, dali em diante, nosso bebê já tinha nome: Miguel!

Kelly Cecilia Teixeira

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Capítulo 12 de 18

Felicidade

Depois da decisão tomada, parecia que eu tinha tirado um caminhão das minhas costas. Eu me sentia muito mais leve e feliz. O Dr. José Domingos me fez sentir segura em relação à parte fisiológica da gestação e a partir daí era só curtir a nova fase. Eu sempre senti que devia seguir adiante, sofria demais quando pensava na possibilidade de interromper, afinal era o meu bebê. Mas confesso que senti muito medo também. A partir dali, tudo aquilo era passado, e a prioridade era dar todo o amor e carinho para o nosso filho.

Ao contar para as pessoas da nossa decisão, a reação era quase sempre a mesma:

“...Ah, conhecendo a Kelly e o Daniel, eu sabia!...”

“...Vocês estão de parabéns, são uns corajosos!...”

“... Esse bebê é muito bem vindo!...”

“...Vocês tomaram a decisão certa!...”

Ouvimos muitas palavras de força. Meus pais, apesar do choque e preocupação iniciais, nos apoiaram firmemente. Principalmente depois que justifiquei aos prantos que não teria coragem de fazer um aborto, afinal eu já o amava e sentia que era meu filho.

Na semana seguinte à notícia, sem saber, a Gilvete nos presenteou com um livro recém lançado pela Associação Médico Espírita do Brasil: “A vida do anencéfalo – Aspectos científicos, religiosos e jurídicos”. Uma publicação esclarecedora, nos três aspectos que eles se propuseram pesquisar. No campo científico ele explica toda a estrutura cerebral, e define o que é correto e o que é mito ao se falar de anencefalia. No campo religioso, por se tratar de uma publicação espírita, dá subsídios para entender e refletir essa situação. E no campo jurídico, defende o cumprimento e manutenção da legislação em vigor. Em meio a tantas informações, uma me chamou a atenção. Falava sobre o tempo. Justificava a manutenção da gestação porque o tempo de vida é relativo para cada ser humano. Alguns podem chegar aos 90 anos, outros morrem aos 50, uns aos 20 e outros vivem uma hora. Mas todos tiveram a oportunidade de viver. O que vale não é o tempo, mas a intensidade a qual passamos pela vida. O que adianta viver 90 anos de desrespeito, de ódio, de solidão? Se cada um de nós puder ter sentido a experiência do amor, a vida já terá valido a pena. Aquelas palavras fizeram todo o sentido pra mim. Independente do tempo, no meu ventre ou fora dele, eu ia tentar aproveitar cada segundo para transmitir ao meu bebê todo amor que eu sentia por ele.

Voltei a sorrir. Voltei a me olhar no espelho com respeito e com orgulho. Voltei a registrar a evolução da barriga. Ia atualizando a galeria de fotos no orkut para que todos os meus amigos pudessem acompanhar mesmo que à distância. Voltamos a viajar. Na primeira oportunidade, fomos nós três para a praia, em uma colônia de férias do trabalho. Apresentei o mar para o nosso bebê. Apresentei o sol pra ele. Coqueiros. Pé na areia. Voltamos a festejar. A cada oportunidade lá estávamos nós badalando. Dançando. Brincando. Voltei a me arrumar. Passar batom. Lambuzar meu corpo de creme. Vestir roupa justa pra aparecer a barriga. Comprei vestidos pra ficar bem feminina. Fazia questão de parar o carro na vaga de gestante e furar a fila no supermercado, pra mostrar ao mundo que eu era mãe. E estava mega orgulhosa disso. Aproveitei pra fazer manha e pedir pra que satisfizessem os meus desejos. Pra minha mãe pedi gelatina colorida. Pro Daniel, pão de forma, com maionese, presunto e queijo amassadinho, daquele jeito que gruda no céu da boca. Pro pessoal do trabalho, cestinha de frutas em substituição à latinha de balas. Nesse meio tempo, o Daniel me ensinou outra linda canção, e eu voltei a cantar para o bebê.

“Vem a noite, doce e calma,
Doce e calma,
Din Don
Din Don
Din Don”

Simples assim.

Kelly Cecilia Teixeira