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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Capítulo 11 de 18

A decisão

Da consulta com o médico especialista até o retorno com o Dr. José Domingos, passaram-se algumas semanas. Nesse meio tempo, a tristeza tomou conta de mim. Apesar disso, voltei ao trabalho e tentava manter a minha rotina normalmente. Ao contar para algumas pessoas mais próximas, elas também se tornavam cúmplices e todas demonstravam solidariedade. Como eu ainda não havia decidido o que fazer, ninguém tomava partido também. Todos diziam que me apoiariam em qualquer decisão que eu tomasse. Também recebi visitas de alguns familiares e a reação era quase sempre a mesma.

Apenas duas pessoas se posicionaram claramente e me aconselharam sobre o que fazer. Uma a favor da continuidade da gestação e a outra contra. A favor, foi minha tia Marina, irmã da minha mãe. Do alto da sua simplicidade, com os olhos marejados, ela me disse com todas as letras:

- Kelly, não tira esse bebê! Não faça isso! Eu tenho fé, do fundo do meu coração, de que tudo dará certo e ele nascerá perfeito!

Contra, foi um colega de trabalho, uma pessoa igualmente simples, que alegava uma situação parecida. Ele e a esposa tinham perdido a segunda filha, num aborto espontâneo aos 06 meses de gestação. Ele dizia que ao ver a filha praticamente toda formada, foi uma imagem inesquecível e incrivelmente dolorosa. Ele acreditava que interrompendo no início da gestação eu não passaria por essa situação.

Eram posições contrárias, mas ambas faziam sentido.

Os dias tinham tornado-se longos, eu havia perdido a capacidade de concentração, não conseguia dormir e quando dormia tinha pesadelos. Um deles inclusive, me fez acordar aos gritos no meio da noite. Sonhei que estava no quarto de uma casa desconhecida, deitada na cama e brincando com uma criança. Pela fresta da porta tinha percebido um vulto. Quando observei novamente vi uma figura horripilante. Era uma mulher, vestia um sobretudo e usava uma máscara branca parecida com a do fantasma da ópera, só que cobria todo o rosto. Ao me ver no quarto, ela se aproximava e apontava uma arma na minha direção. Desesperada, a minha reação foi primeiramente proteger aquela criança, uma menina, por volta dos 04 anos. Fiquei encurralada na parede do quarto, e quando calmamente aquela mulher puxou o gatilho, eu acordei com um berro. O Daniel acordou também, assustado, e antes que eu conseguisse contar o que tinha sonhado, ele me trouxe um copo de água com açúcar. Demorei a pegar no sono novamente nessa noite e naqueles que a sucederam.

A minha indecisão era baseada no sentimento de medo. Um medo profundo. O amor que eu sentia pelo meu bebê era de fato incondicional. Mas ao fechar os olhos era como se eu visse flashes dos rostos dos médicos e aquelas vozes graves me atormentando:

“...você pode perder o útero...”

“... você terá complicações na hora do parto...”

“... dificuldade de respiração e locomoção...”

“... vida vegetativa...”

“... injetamos um líquido no coração dele...”

“...”

“...”

Pela primeira vez na vida tive medo de morrer.

E sentia todo o peso do mundo nas minhas costas, pois somente eu podia decidir. Pedia a Deus um sinal. Pedia para que Ele perdoasse os meus maus pensamentos, mas pedia também que ele tirasse aquele medo do meu peito.

No dia marcado, eu e o Daniel voltamos ao consultório do Dr. José Domingos. Minha mãe nos acompanhava. Fomos cheio de dúvidas, mas podíamos imaginar as respostas. Tivemos uma longa conversa, mas apenas alguns trechos ficaram registrados na minha memória.

Eu e o Daniel estávamos sentados, e minha mãe permanecia de pé. Depois de algumas perguntas iniciais, lembro-me da minha mãe perguntando se eu corria algum risco.

- Só pelo fato de estar grávida, ela já corre algum risco, mas nenhum além do que uma gestante qualquer. É claro que será uma gestação especial, e por isso será necessária uma atenção diferenciada. Da mesma forma que outros casos especiais como mulheres com pressão alta, diabetes etc., e que levam a gravidez numa boa.

E continuava:

- Caso optem pela interrupção, quero lembrar que vocês devem fazer o pedido formal à justiça, e que se for aprovado, vocês serão encaminhados para um hospital público, realizando o procedimento com o médico indicado.

Além de todo o drama que seria caso optássemos em não levar adiante a gestação, saber que eu seria encaminhada para um hospital da rede, conhecendo a realidade da saúde pública no nosso país e ainda ser atendida por alguém que eu nem conheço, me fez gelar ainda mais. Nessa hora, minha mãe perguntou:

- Mas nesse caso, ela não poderia indicar, já no pedido judicial, o nome do senhor e do hospital que ela deseja fazer o procedimento?

E o Dr. José Domingos foi categórico:

- Eu não faço abortos.

E continuou:

- Além disso, não é possível indicar o hospital porque poderia parecer favorecimento.

Silêncio na sala. Após alguns longos segundos, minha mãe disse que não tinha mais nada a perguntar e pediu licença para sair da sala, deixando-nos a sós com o doutor.

Mais algumas perguntas e finalmente dei um ultimato:

- Mas doutor, todos ficam dizendo que somos nós, ou melhor, sou eu que tenho que decidir, mas eu preciso de ajuda! Afinal, o senhor, como médico, o que me indica?

Ele deu um sorriso maroto e perguntou:

- Você quer saber como médico ou como pessoa?

E eu sem graça respondi:

- Er... os dois. Os dois são importantes, não é?

E ele nos disse a sua visão.

- Como pessoa... Não sei em que vocês acreditam, mas eu acho que se o bebê de vocês veio dessa forma é sinal de que tem um porquê. Alguma missão, alguma prova que ele e vocês devem passar. Até eu, como médico, se estou envolvido nessa história, é por que tenho algo a aprender. Sabe, eu sou espírita...

Nessa hora, antes que ele continuasse, eu e o Daniel nos entreolhamos, sorrimos e interrompemos com um suspiro aliviado:

- Nós também somos!

- Pois então, vocês sabem que situações como essas são oportunidades dadas a espíritos que precisam de ajuda. Agora, como médico, a gente indica a interrupção devido a toda a carga e a pressão psicológica que um caso assim traz à mãe.

- Mas meu medo é a perda do útero...

Espantado, ele perguntou:

- Mas é somente isso que está colocando você em dúvida?

- Sim...

- Ah não... Quanto a isso, deixa comigo! Se for isso que te impede de continuar a gestação, pode ficar sossegada!

Quando ele disse “deixa comigo”, trazendo toda a responsabilidade pra si, senti uma confiança incrível. Aquelas palavras chegavam até os meus ouvidos envolvidas de esperança e de alívio.

- Então o senhor topa essa empreitada com a gente?

E ele nem titubeou:

- Vam’bora!

Naquela hora, tive a mesma sensação de quando descobri que estava grávida. Uma alegria imensa invadiu o meu peito e era como se eu estivesse começando a gestação toda de novo. Foi aí que eu aprendi o que era ser uma mãe de verdade.


domingo, 29 de janeiro de 2012

Capítulo 10 de 18

Outras opiniões

No dia seguinte fomos até outro laboratório repetir o exame. Ao entrar na sala, a assistente me ajudou a deitar na maca e toda sorridente perguntava:


- É seu primeiro filho?

E eu desconcertada, olhava discretamente para o Daniel e respondia.

- É.
- Que bacana. Está contente?
- Sim.
- Já sabe o sexo?
- Não.
- Tem preferência por menino ou menina?


Naquele momento, não pude segurar o choro e respondi aos prantos:

- Eu preferia que ele fosse saudável...

Sem entender, a assistente ficou assustada e tentou contornar a situação. Depois que eu expliquei o possível diagnóstico, ela pediu milhões de desculpas. Mas eu a entendia, ela não tinha culpa nenhuma, não tinha como saber.

Quando o médico entrou na sala, meu coração acelerou e fiquei ansiosa em saber a opinião dele. Torcia para que fosse diferente. Não foi.

Ele explicou exatamente como o Dr. Leonardo, mas foi além. Disse que em casos de malformação, justamente devido ao acúmulo de líquido amniótico, a bolsa poderia romper-se abruptamente, ocasionando um descolamento de placenta e a possível perda do útero. Quando ele deu esse parecer, o que parecia trágico ficou ainda mais assustador. Perder o útero? Mas e o desejo de tentar ter outros filhos???

Minha cabeça rodava.

E ele continuava. Seria bobagem manter uma gestação dessa forma, pois caso o bebê sobrevivesse ao nascimento, ele teria uma vida vegetativa. E ainda questionava: “Para quê?”.

Perguntei se era comum esse tipo de caso. Ele respondeu que não e comparando, disse ainda que realiza uma média de 300 ultra-sonografias por mês, e que há 2 anos não via um caso como o meu.

Assustada, ainda tive coragem de perguntar:

- Se optarmos pela interrupção, como ela é feita?

- Existem duas maneiras. A primeira é aplicar um remédio em você, forçando o seu corpo a expulsar o feto, e aguardando-o morrer fora do ventre. A outra é aplicar um remédio diretamente no coração dele, fazendo-o parar de bater. Dessa forma, pode ser que seu corpo entenda que precisa expulsá-lo naturalmente. Dependendo da situação, ainda é necessário fazer uma curetagem.

Enquanto ele explicava as técnicas de abortamento era como se um punhal fosse sendo enterrado no meu peito a cada palavra dita. Era muito cruel.

Ainda assim, ele fez questão de repetir que essa era uma decisão única e exclusivamente nossa.

Antes de terminar o exame, não contive minha curiosidade:

- É possível saber o sexo do bebê?
- Ainda é muito cedo para saber, posso dar alguma informação errada, mas tenho a impressão de ser um menino.

No mesmo dia, à noite, fomos até a casa espírita onde o Daniel é evangelizador. Às quintas-feiras é feito um trabalho de tratamento espiritual, com a palestra para a família e o passe. Enquanto aguardávamos a entrevista, a diretora da casa, Gilvete, chegava e do portão já nos avistou. Vendo nossa expressão de sofrimento, foi logo perguntando o que se passava. Contamos aos prantos e ela ouviu atenciosamente. Ao término da nossa história, ela nos disse calma e carinhosamente:

- Agradeçam ao Pai. Vocês são espíritos de luz e foram escolhidos para dar a oportunidade a esse espírito irmão, que precisa de ajuda. Não temam, pois o Senhor escolhe àqueles que são mais qualificados para as suas missões.

Dizendo aquelas palavras, as primeiras de redenção, as que vinham acalantar ao invés de julgar, as que traziam amor e não desespero, a querida Gilvete conseguiu acalmar meu coração. E pela primeira vez naqueles dias, eu consegui respirar profundamente.

Passamos pela entrevista, assistimos à palestra e tomamos o passe.

Na sexta, conforme combinado, passamos em consulta com o Dr. José Domingos, em um consultório do outro lado da cidade. Chegando lá, vendo que fisicamente eu estava bem, ele comentou que a orientação de procurar o hospital, era porque ele achava que eu estava sangrando. Sendo assim, ele ficava mais despreocupado.

Mostramos os exames e ele confirmou o diagnóstico. Ao saber dos comentários dos outros médicos, disse que achava um tanto exagerados, e que as chances de eu perder o útero, eram as mesmas de eu sair de casa e ser atropelada. Ou seja, existe? Sim. Mas são mínimas. E ainda reforçou que em 19 anos de profissão, mesmo acompanhando gestações de alto risco, ele e a equipe nunca perderam um útero.

Reforçou ainda que não é permitido realizar aborto em casos de anencefalia. E que se optássemos por essa decisão, teríamos muita dor de cabeça em enfrentar a justiça.

Finalizou aquela consulta de urgência com um encaminhamento a um médico especialista em medicina fetal, bastante reconhecido na área. E confirmou nossa próxima consulta no seu consultório habitual, que já estava agendada desde a última vez que nos encontramos.

No dia marcado, fomos eu, o Daniel e minha mãe até o especialista em medicina fetal. Uma clínica bem arrumada, elegante. Na sala de espera encontravam-se diversas revistas e livros. Folheando um desses livros, vi uma reportagem que mostrava uma operação intra-uterina bem sucedida realizada pelo médico o qual aguardávamos a consulta. Naquele momento senti uma pontinha de esperança.

Na sala dele, ansiosos, esperávamos por respostas positivas. Ele olhou os exames e começou a explicar didaticamente o que acontecia. Não falou nada de diferente dos outros médicos, a única diferença foi que ele desenhou em um papel toda a estrutura do sistema nervoso de um bebê, e o que exatamente estava faltando no nosso bebê. Fez uma longa entrevista comigo e com o Daniel, perguntando sobre tipo sanguíneo, possíveis casos na família, grau de parentesco, doenças pregressas e religião. Não trouxe nenhuma novidade. Informou apenas que dadas as informações, não parecia um caso de genética e a causa mais provável era mesmo a deficiência de ácido fólico. Também igual aos outros médicos, disse que a decisão em manter ou interromper a gestação era nossa:

- Os pais é quem devem decidir. Prioritariamente a mãe, pois é ela quem vai carregar o bebê os nove meses, é ela quem vai sentir o corpo mudando e os hormônios em ebulição.

E continuou:

- Porém, acho bobagem manter a gestação.

Nessa hora, minha mãe perguntou se havia algum risco para mim caso eu decidisse continuar.

- Ela corre riscos como qualquer gestante, mas devido à malformação do bebê, ela pode ter complicações na hora do parto.

Meus olhos encheram-se de lágrimas.

- Vou deixar com vocês o modelo de solicitação à justiça, caso vocês optem pela interrupção. Além disso, já vou assinar o laudo alegando a incompatibilidade com a vida.

Assim que terminou de falar, abriu dois arquivos no computador, que já estavam prontos, incluiu apenas os nossos dados e imprimiu. Entregou em um envelope da clínica e orientou que não tínhamos muito tempo, era necessário decidir rápido, porque além do estágio avançado da gestação, a justiça era lenta.
Saí do consultório arrasada. Aquele papel na minha mão ardia como fogo. Não conseguia enxergar nenhuma saída que pudesse acalmar meu coração.

Kelly Cecilia Teixeira


sábado, 28 de janeiro de 2012

Capítulo 09 de 18

O diagnóstico

Era dia 15 de julho de 2009. Uma quarta-feira. Conforme combinado com o Dr. Leonardo, voltamos ao laboratório para repetir o exame. Dessa vez, fomos eu e minha mãe. Como de praxe, esperamos um pouco até sermos chamadas, e como não havia hora marcada, outras gestantes passaram na minha frente.

Ao entrar na sala, entreguei outro DVD para a assistente, deitei na maca e me preparei. O doutor entrou, me reconheceu e iniciou a ultra-sonografia. Enquanto ele observava atenciosamente em silêncio, eu e minha mãe comentávamos sobre a graça que o bebê parecia estar fazendo. Continuava mexendo bastante. Após alguns minutos, o Dr. Leonardo interrompeu novamente o exame e disse que seria necessário fazer a ultra-sonografia endovaginal, que é interna, pois não estava conseguindo visualizar direito. Limpei o gel da minha barriga, fui até o banheiro para tirar minha calça e calcinha e colocar o avental. Voltei, deitei e começamos tudo de novo. Após mais alguns longos minutos em silêncio, ele disse:

- Kelly, não tenho uma boa notícia para dar a você...

Naquele instante, meu coração gelou. Antes que ele continuasse a frase, em uma fração de segundos, milhares de coisas passaram na minha cabeça. Uma delas foi que meu bebê fosse portador de alguma síndrome, que ele tivesse necessidades especiais. Ao mesmo tempo em que imaginava isso, meu coração dizia “ok, eu o amo, vamos cuidar dele”. Mas o diagnóstico seria ainda mais angustiante. Calma e pausadamente, o doutor começou a nos explicar o que estava acontecendo:

- Kelly, o seu bebê não formou os ossinhos do crânio, o que chamamos de acrania. Por esse motivo, o sistema nervoso central fica exposto diretamente ao líquido amniótico, levando à anencefalia, que é a ausência de partes do cérebro. Esse tipo de malformação, infelizmente, é incompatível com a vida.

Eu estava atônita, não conseguia dizer uma palavra. Séria, sentia apenas meus olhos arregalados e minhas mãos frias. Sentia um vazio e não sabia o que pensar. Nesse momento, senti minha mãe segurando minhas mãos, e a vi chorando com o rosto virado. Voltei meu olhar novamente para o médico e percebendo a minha quietude desconfortante, ele continuou:

- O fechamento do tubo neural acontece nas primeiras semanas de gestação, em um período em que provavelmente você nem soubesse que estava grávida. Pode ser ocasionado pela deficiência de ácido fólico, o que é sempre o mais provável, mas também pelo contato com produtos químicos, medicamentos ou até fatores ambientais como poluição intensa, por exemplo. Vide os casos freqüentes na cidade de Cubatão, em São Paulo, há muitos anos, onde existiam muitas indústrias.

Eu ainda estava sem fala. Não sabia o que dizer e o que perguntar. Aquilo não estava no roteiro, não fazia parte da minha lista de dúvidas. Não sabia que podia acontecer comigo. Diante do meu silêncio, ele ia falando.

- Pelo que posso observar, o restante do corpo dele está se desenvolvendo normalmente, o coração bate regularmente, o tamanho do tórax está normal, assim como o fêmur e demais partes. Em casos assim, existem duas opções. Você pode optar pela interrupção da gestação ou a continuação até o final. No caso da interrupção, é preciso entrar com um pedido formal na justiça, pois mesmo sendo uma malformação grave, não é permitido realizá-la no Brasil. Os dois únicos casos em que é permitido realizar aborto são quando a mãe corre risco de morte ou em caso de estupro. Porém, se desejar continuar com a gestação, você não corre risco, mas pode ter acúmulo de líquido amniótico, o que deixará sua barriga maior do que o normal, e você pode ter dificuldade de respiração e locomoção. Se optar em ter o bebê, você pode ainda doar seus órgãos.

Quando finalmente consegui falar, ainda atordoada, perguntei se existiria algo a fazer, algum tipo de cirurgia, de medicamento etc. Ele foi enfático.

- Infelizmente, não.

Ao concluir o exame, ele se prontificou em conversar com o Daniel se fosse necessário. Desejou seus sentimentos e se colocou à disposição. Levantei da maca ainda meio perdida. Minha mãe passava a mão na minha cabeça e chorava. Eu continuava sem saber o que dizer. Estava angustiantemente quieta. Um silêncio de alma. Sentia meu corpo pesado, meus braços moles. Mas tive força para me levantar e ir até o banheiro me trocar. Quando fechei a porta e me olhei no espelho, foi como se todo o desespero que percorria meu corpo circulasse em cada célula e desembocasse em meus olhos. Foi um encontro profundo, como se observasse não só os meus olhos, mas a minha essência, gritando. Daí para o choro foi um segundo. Chorei desesperadamente, parada, me olhando no espelho. Era como se todos os meus sonhos tivessem ruído tijolo por tijolo. Quase não conseguia respirar. Minha garganta travou e meu rosto e roupa começavam a encharcar. Após eternos segundos, consegui me vestir e sair de lá.

Saí calmamente ajudada pela minha mãe e pela assistente. Voltamos para a sala de espera e sentamos. Minha mãe perguntou se queria que ela ligasse para o Daniel. Eu olhava pra ela, mas não entendia o que ela estava falando. Só respondia: “não sei”. E de fato, eu não sabia de mais nada. Não sabia se levantava, se saía, se ficava. Ela insistiu. Aí eu disse que não, que contaria em casa. Segundos depois, mudei de ideia. Melhor era o médico conversar diretamente com ele. Mas o que diria no telefone? Porque a urgência? Tomei coragem e liguei.

- Dan, nosso bebê não está bem, o médico quer conversar com você. Você pode vir?

Enquanto esperávamos a sua chegada, ficamos ali, sentadas. Eu olhava para o chão e intercalava entre um choro baixinho ou uma lágrima que insistia em escorrer pelo meu rosto. O silêncio nos dominava. Cabisbaixa, percebia os olhares assustados e curiosos dos outros pacientes e observava invejosamente as outras grávidas de barriga empinada.

Foram longos e tortuosos minutos até o Daniel chegar. Quando o vi apontando na escada, perdi a respiração e meus olhos encheram-se de água. Ao abraçá-lo, explodi e chorei intensamente. Eu o sentia passando a mão entre os meus cabelos e dizendo no meu ouvido: “calma, está tudo bem”.

Ao me acalmar, sentamos novamente. Minha mãe nos deixou a sós e eu tive a dura incumbência de lhe contar o que acontecia. Falei da malformação, do seu desenvolvimento, e terminei dizendo o pior, que o nosso bebê não sobreviveria ao nascimento. Ao dizer isso, o Daniel levou as mãos ao rosto e também chorou, como eu nunca o havia visto chorar antes. Se meu coração já estava partido, ele foi esmiuçado naquele momento. Éramos cúmplices dessa história.

Pouco tempo depois, já avisado da chegada do Daniel, o Dr. Leonardo nos chamou de volta ao consultório e explicou detalhadamente o diagnóstico para o Daniel. A sua reação foi exatamente como a minha: silêncio. E quando ele conseguiu falar, fez a mesma pergunta. Tendo a mesma resposta. O médico se colocou novamente à disposição e nos desejou boa sorte.

Do laboratório, tentamos falar com o Dr. José Domingos, mas como ele estava fora do consultório, a secretária fez a intermediação, e a orientação foi que procurássemos o Hospital Santa Helena no mesmo dia e fôssemos ao outro consultório dele na sexta-feira.

Antes de irmos para o hospital, fomos pra casa. Chegando lá, fui direto pro meu quarto e deitei. Chorei tanto que minhas pálpebras incharam e quase não conseguia abrir meus olhos. Me enrolei no edredon e contorci meu corpo até que eu mesma ficasse em posição fetal. Sentia uma dor que não tinha lugar certo. Somente doía. Sentia o Daniel atrás de mim passando a mão na minha cabeça tentando me consolar. Minha cabeça carregava um turbilhão de imagens, das mais doces às mais trágicas e todas elas me faziam chorar ainda mais. Lembro-me da minha mãe me trazendo um chá, que ficou sobre o criado-mudo quase até esfriar. Não conseguia dizer uma palavra. Não tinha forças e nem vontade. Foram horas do mais profundo desespero. Quando finalmente consegui falar, as únicas palavras que ousaram sair da minha boca foram “perdoa-me, meu filho, perdoa-me”. Entre as coisas que se passavam na minha cabeça, martelava a dúvida: “o que eu fiz de errado?”. Fiquei tentando recapitular todas as minhas ações e “será que foi algum remédio que eu tomei?”, “será que foi algum esforço que eu fiz?”, “será que é porque estou gorda, sem saúde?”... enfim, sentia uma culpa sem saber porquê. Chorei até perder a energia e adormecer.

Um tempo depois, recobramos as forças e fomos até o hospital. Estava cheio e tivemos que esperar muito até sermos atendidos. Finalmente, quando fomos chamados, era como se uma ponta de esperança surgisse e pudéssemos ouvir que aquele diagnóstico estava equivocado. Mas o médico foi curto e grosso.

- Nesses casos, o mais indicado é realizar um aborto terapêutico.

Terapêutico?
Ainda assim, solicitou um novo laudo para confirmar o diagnóstico.

Voltamos pra casa e eu voltei para a minha cama. Nesse meio tempo, meu pai veio até a minha casa, entrou no meu quarto, passou a mão na minha cabeça e voltou pra sala. Mais tarde, acordei com a visita dos pais do Daniel e do seu irmão. Apesar de estar mais calma, não hesitei em cair no choro novamente ao abraçar minha sogra. Lembro-me do olhar assustado do meu cunhado e sereno do meu sogro.
Naquele instante, lembrei de uma história que havia lido uma semana antes na casa deles. Era uma história aparentemente tão fantástica, em todos os sentidos da palavra, que não tinha a menor relação comigo no momento em que a li. Mas que agora fazia todo o sentido. Era a história de uma menina que enviava uma mensagem do plano espiritual, agradecendo a oportunidade dada pelos pais em trazê-la ao mundo mesmo com anencefalia. E que por causa disso, estava se recuperando muito bem e se preparando para uma próxima encarnação como uma criança saudável.

Não podia acreditar que isso também estava acontecendo comigo.

Conversamos muito. Aliás, eu mais ouvia do que falava. E dado um certo momento, resolvemos ler o
evangelho. Fizemos uma prece e nos despedimos.

Kelly Cecilia Teixeira


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Capítulo 08 de 18

Encontros

Entre os exames pedidos pelo Dr. José Domingos estava a ultra-sonografia morfológica de 1º trimestre, que eu agendei assim que cheguei em casa. Enquanto aguardava o dia, vivia na internet pesquisando sobre a gestação e o que acontecia em cada fase de desenvolvimento. Descobri vários sites que mostravam semana a semana tudo o que poderia acontecer com o meu bebê. Em um deles, dizia que naquela semana de gestação o bebê podia perceber alguns sons e que seria bacana a mamãe e o papai conversarem com ele, e que se houvesse alguma música preferida, cantar para o bebê. Se ele ouvisse a mesma ou as mesmas canções dentro da barriga com freqüência, muito provavelmente ele as reconheceria fora também. Além disso, esse tipo de atitude reforçaria os laços de amor e carinho entre os pais e o bebê.


Assim que soube disso, procurei conversar sempre com ele. No início parecia meio absurdo, como se fosse maluca e estivesse falando sozinha. Ficava envergonhada se estivesse na frente de alguém. Mas aos poucos fui me acostumando e depois achava um barato porque era como se tivesse um cúmplice para quem pedia opiniões e compartilhava os pensamentos.

Num certo dia, de manhã ao despertar, o Daniel abriu a janela do quarto e o dia estava lindo, com um céu azul de dar gosto e o sol brilhante a raiar. Era sábado e estávamos tranqüilos em casa, sem nada pra fazer. Continuamos na cama por um tempo, e deu aquela preguiça gostosa de ficar deitada sentindo o sol que iluminava o quarto. Como não estávamos sozinhos, ele deu um beijinho na minha barriga desejando um bom dia para o nosso bebê. Nessa hora, ele se lembrou de uma música que cantava para as crianças na evangelização, assim que elas chegavam para a aula, e repetiu com o rosto pertinho da minha barriga:

“Bom dia, muito bom dia,
Que bom que você chegou
O nosso coraçãozinho
Ao vê-lo feliz ficou.”

Adorei aquela canção. Simples e deliciosa. Pedi pra ele repetir para que eu pudesse aprender, e cantei novamente para o nosso filho. Estava eleita a música que cantaríamos todos os dias para ele.
Chegado o dia para o exame, fomos eu e o Daniel. O médico era o Dr. Leonardo, que nos recebeu super bem. Deitei e me preparei. Era como se ao ver o nosso bebê no monitor fosse um encontro “cara-a-cara”, como se ele soubesse e pudesse acenar para a gente. Engraçado.

O DVD estava pronto para gravar e começamos o exame. Foi uma surpresa ver que ele tinha se desenvolvido tanto! Não era mais somente um “feijãozinho” como na última ultra-sonografia. Embora estivesse ainda no início da sua jornada, já era possível identificar os seus contornos de bebê. A cabeça, ainda desproporcional ao corpo, os bracinhos e perninhas. Que lindo! Eu e o Daniel trocávamos olhares orgulhosos, quando conseguíamos desviar do monitor do aparelho. E que serelepe! Nosso bebê, obviamente não acenava como eu havia de brincadeira imaginado, mas mexia bastante, levantava a cabeça e as perninhas, como se estivesse brincando dentro da água. Era uma diversão.

Embora aqueles instantes parecessem eternos, foram poucos minutos até o Dr. Leonardo interromper o exame:

- Não será possível fazer o exame hoje. O feto ainda é muito pequeno e podemos tirar conclusões erradas. Voltem na semana que vem, nesse mesmo horário. Não será necessário marcar uma nova consulta. Venham direto na recepção da sala e falem com a enfermeira-chefe.

Conformados, saímos da sala e viemos embora. Apesar de não ter concluído o exame com as informações necessárias, estávamos felizes por ter visto nosso bebê brincando dentro da minha barriga.

Naquela semana, meu irmão e meu sobrinho faziam aniversário e fomos comemorar na casa da minha mãe. Levei o DVD e orgulhosa, mostrei para todos os convidados como o nosso bebê era lindo. Todo mundo ria e se impressionava como ele mexia tanto. Era um estado de graça, todo mundo me abraçava e desejava boa sorte. Na hora dos parabéns, meu irmão fez um discurso e embora ele fosse o aniversariante, resolveu fazer uma homenagem a todas as mães presentes. Distribuiu uma flor e um CD com uma oração a cada uma, inclusive a mim. Foi uma delícia participar daquele seleto grupinho...

Um dia antes de voltar ao laboratório para repetir o exame, fui a uma exposição de arte como parte de um treinamento do trabalho. Uma das obras chamava-se “Árvore dos desejos”, da artista plástica Yoko Ono, e consistia em diversas pequenas árvores, onde as pessoas podiam interagir anotando em um papelzinho um desejo secreto e pendurando em um de seus galhos. Não tive dúvida em participar da brincadeira e fui logo anotando:

“Eu desejo que meu filho nasça com muita saúde”.

Satisfeita, pendurei o papel no galho da árvore e mentalizei novamente o desejo enquanto amarrava o cordão.

Kelly Cecilia Teixeira


quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Capítulo 07 de 18

A primeira consulta

Ao se aproximar o dia agendado para a primeira consulta com o Dr. José Domingos, fui adicionando mais perguntas à minha lista de dúvidas. Não queria esquecer nada, pois embora tivesse exemplos próximos de outras gravidezes, eu era mãe de primeira viagem.


Apesar dele ser uma indicação da minha ginecologista de muitos anos, e de coincidentemente também ter acompanhado a gestação das minhas duas primas, eu estava receosa em passar por um médico diferente, que eu nunca tinha visto. Por isso, as perguntas também eram uma forma de saber como ele pensava e se suas ideias bateriam com as minhas.

Eu tinha algumas concepções de vida e opiniões bastante firmes, como por exemplo, a tentativa sempre que possível para o parto normal. Como há uma tendência dos médicos em indicar a cesariana, gostaria de ouvir a opinião do meu obstetra a respeito do assunto.

Chegado o dia, eu e o Daniel nos dirigimos até o consultório e já na sala de espera percebi o que estava por vir. Haviam duas grávidas aguardando a consulta. Uma delas, aparentemente no final da gestação estava com o tornozelo bastante inchado, vestindo calça de cotton e uma blusa batinha que cobria a barriga. Linda.

A cada nome chamado, a tensão aumentava... “será que ele vai medir minha barriga?”, “que outros exames ele deve pedir?”, “será que ele é bacana, sensível?”, “será que ele vai ser atencioso e responder a todas as minhas perguntas?”... Enquanto estava absorta em meus pensamentos, ouvi:

- Kelly Cecília Teixeira! Pode subir!

Ao subir as escadas, meu coração acelerou e pensei: “vamos lá, coragem, essa será a primeira de muitas...”

Ao vê-lo no final do corredor, na frente da porta, de braços abertos e sorriso no rosto, percebi que eu estava fazendo uma tempestade em um copo de água, e que a consulta não seria nenhum bicho de sete cabeças. Entramos, sentamos e conversamos. Muito. Ele respondeu a todas as minhas dúvidas, e entre uma pergunta e outra fazia uma brincadeira para descontrair. Deu várias recomendações, a principal delas era controlar o peso, pois estava bem acima já no início da gestação. Viu os exames pedidos pela Dra. Tânia e confirmou que estava tudo dentro da normalidade. Pediu outros exames e programou a próxima consulta para o mês seguinte.

Gentilmente, ele nos levou até a porta e se despediu com um abraço. Ao sair do consultório, finalmente respirei aliviada.

Kelly Cecilia Teixeira


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Capítulo 06 de 18

Mudanças

Passada a primeira fase onde as emoções eram todas externadas, compartilhadas com a família, amigos e colegas de trabalho, entramos numa fase de introspecção. Por vezes, deitados na cama, na hora de dormir, eu e o Daniel nos surpreendíamos rindo sozinhos, sem motivo, olhando pro teto de mãos dadas e especulando uma série de situações. O sexo do bebê... possíveis nomes... que fase de desenvolvimento ele estaria dentro da minha barriga... com quem ele seria parecido... como montaríamos o quartinho dele... aí, começava a dar um frio na espinha de imaginar quanta responsabilidade estaria por vir... se estávamos mesmo preparados... como ficaria nossa situação financeira... se saberíamos cuidar direito de um bebê... etc etc etc... mas as preocupações dissipavam em um segundo quando imaginávamos o sorriso dele brincando no tapete da sala. Passávamos horas assim, até o sono chegar e a gente adormecer.


Em tão pouco tempo de gravidez o corpo não havia apresentado nenhuma mudança aparente, ainda mais que por estar fora do peso, as gordurinhas extras escondiam a típica barriga de grávida, que num corpo magro se tornaria muito mais visível. Mas isso não impedia que eu ficasse horas admirando meu corpo no espelho. Com roupa ou sem roupa. Após o banho, então, era quase um namoro. Tratei de usar todos os cremes que eu tinha direito. Passava a mão na barriga com cuidado, espiando de lado, curvando a coluna, brincando de empinar o umbigo. Os seios também recebiam atenção. Como seria amamentar? Será que eles cresceriam muito na gestação? Por vezes, chegava muito perto do espelho pra observar os mamilos. Apertava com delicadeza e dava risada sozinha. Era muito cedo pra sair qualquer substância dele, quiçá leite... Com roupa, a brincadeira era com o travesseiro, fazendo volume embaixo da blusa pra simular como eu seria quando estivesse de barrigão. Em qualquer uma das situações a expressão era a mesma: o sorriso no canto da boca, o suspiro orgulhoso e o olhar apaixonado.

Em casa, pouca coisa havia mudado, mas planos não faltaram. Comprei várias revistas de decoração de quartos infantis, que inspiraram diversas ideias, mas sem saber o sexo do bebê não dava pra fazer muita coisa. Ainda assim, o quarto de solteiro da casa, que até então servia de escritório, estava com seus dias contados. Teríamos que arrumar um outro lugar para o computador e toda a tralha que o acompanha, os livros expostos nas prateleiras, que fatalmente dariam lugar a brinquedos e bichos de pelúcia e a bagunça guardada no armário, que seria transformado em guarda-roupa. Não tínhamos pretensão de mudar as cores das paredes, mas pelo menos decorá-las com adesivos, quadros ou alguma pintura temática. A cama seria transformada em sofá, com bastantes almofadas e rolinhos nas laterais. Faltaria o berço. A poltrona de amamentação. O carrinho. A banheira... No aguardo de todas essas mudanças, compramos apenas duas caixas, de cores neutras, pra guardar os presentes acumulados.

Na hora do almoço não havia muita dificuldade, não sentia náuseas e quase não tive enjôos. A diferença era apenas que não tinha vontade de comer nos lugares de sempre. Parecia que a comida tinha um gosto diferente, embora os chefs fossem os mesmos durante toda a gestação. Por isso, variava o cardápio e tentava almoçar em novos restaurantes próximos do trabalho. À noite, em casa, passei a evitar as guloseimas e me esforçava em optar pelos alimentos mais saudáveis. Era uma tentativa, mesmo que tardia, de me manter dentro de um peso aceitável sem exageros. Tomava também um complemento de vitaminas receitado pela Dra. Tânia, que ajudaria a completar o que faltasse na alimentação, inclusive o ácido fólico.

Não tive nenhum tipo de reação adversa, ou pelo menos nenhuma que aparecesse mais do que a felicidade que estava sentindo. Não tive tonturas, a pressão arterial estava boa, sempre tendendo para baixo, não tive nenhum tipo de dor e nem sangramento. A única coisa que sentia era uma cólica, parecida com a menstrual, mas muito discreta, como se acusasse a mudança pela qual meu corpo estava passando. O único sintoma que não sumia era a ansiedade, desta vez, pela primeira consulta com o meu obstetra, cujo ouvido seria bombardeado pela lista de perguntas que eu estava preparando.

Em meio a tantas novidades, no corpo, na mente e no coração, continuávamos nossa rotina diária. Agradecendo a cada novo dia o presente enviado por Deus.

Kelly Cecilia Teixeira


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Capítulo 05 de 18

A notícia

A notícia da gestação causou quase uma comoção nacional. Na família, por parte de pai, eu era a última neta que faltava ter filhos. Tanto meu irmão, quanto minhas primas diretas, embora mais novas do que eu, já tinham seus rebentos, e por isso, estavam todos ansiosos. Foi uma festa. Por parte de mãe, apesar da família grande, com muitos primos e sobrinhos, a notícia não fez menos sucesso. Estavam todos felizes com a nova gestação. Já na família do Daniel, nosso bebê seria o primeiro neto, mas teria alguns priminhos mais distantes pra brincar.


Na primeira visita pós-notícia, já ganhamos sapatinhos, panos de boca, meias e uma linda manta branca de plush. Mesmo já casada e com 30 anos, foi naquele momento que eu tinha definitivamente passado para o mundo dos adultos. As mulheres da família, mãe, avó, tia, primas, todas me davam recomendações do que fazer e do que não fazer, além de contar suas próprias experiências de gestação. As primas, que faziam parte da geração mais nova, davam dicas mais atualizadas desmentindo as receitas mais antigas. Era um ti-ti-ti eufórico, todas falavam muito e ao mesmo tempo. E eu ali no meio olhando de um lado pra outro, quase sem reconhecer o que elas diziam, como se o som se neutralizasse e eu visse apenas os movimentos, as risadas, os toques na minha barriga. Eu estava feliz da vida por integrar aquele grupinho de mães.


No trabalho, a notícia também foi muito bem recebida. Apesar de ter um pouco mais de um ano de empresa, já tinha feito muitos amigos, e todos ficaram bastante contentes. Foram vários abraços, congratulações e gritinhos histéricos das amigas mais próximas. Era um estado de graça geral. Mal havia passado o estado de euforia inicial, logo vieram os cuidados: “você precisa comer direito”, “não pode pegar peso”, “evite subir escadas”, “não pode passar nervoso”, entre outras recomendações não menos importantes. Recebi e-mails, telefonemas e também alguns presentes acompanhados de lindos cartões desejosos de bastante saúde.

Na turma de amigos, outra festa. O núcleo principal era formado por dois casais com filhos, dois casais sem filhos, um casal de namorados, dois solteiros e agora, um casal de grávidos. Todos viviam o tempo todo juntos. Muitos se conhecem desde a infância, quando freqüentavam as aulas de evangelização na Federação Espírita de São Paulo. Por terem quase a mesma idade vivenciaram momentos parecidos ao longo da vida: foi a mesma época quando todos entraram na faculdade, a mesma época quando começaram a namorar, a mesma época quando se casaram, e naquele momento havia uma expectativa de qual seria o próximo casal a ter filhos. Eu e o Daniel fomos os premiados. Por um lado, os amigos com filhos nos diziam o quão incrível era serem pais e que sentimento mais verdadeiro era o amor por um filho. Por outro, os casais sem filhos, nos diziam das novas responsabilidades que estavam por vir e das concessões que teríamos que fazer nessa nova fase de vida, como se assim também adiassem uma empreitada parecida. No meio das brincadeiras e dos conselhos poéticos ou pé no chão, havia o sentimento de irmandade, como se todos os amigos automaticamente se tornassem padrinhos e madrinhas daquele novo amigo que passou a fazer parte da turma.

Em todos os lugares ouvimos parabenizações seguidas de conselhos, mas todos muito verdadeiros. Foi incrível sentir toda aquela energia por onde quer que passássemos ou pra quem quer que contássemos. Era como se tivéssemos ganhado na loteria. Não me lembro de ninguém que não tenha aberto um sorriso ao saber que um novo bebê estava a caminho.

Kelly Cecilia Teixeira


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Capítulo 04 de 18

Exames iniciais

Por indicação da Dra Tânia, que não estava mais atuando na área da obstetrícia, marcamos uma primeira consulta com o Dr. José Domingos, que acompanharia todo o pré-natal. Porém, ela mesma se adiantou e pediu os exames iniciais, de sangue, urina e a primeira ultra-sonografia, que realizei corretamente como recomendado.


A primeira ultra-sonografia obstétrica foi acompanhada com muita emoção por mim e pelo Daniel. Porém, como descobrimos a gestação ainda muito no início, havia pouca coisa a ser vista, e como pais de primeira viagem, tudo era muito novo e diferente. Só pudemos ver o saco gestacional e a vesícula vitelina, que são as primeiras estruturas a se formarem. Com uma gestação prevista de aproximadamente 05 semanas, ainda não era possível enxergar o embrião. Ainda assim, saímos do laboratório radiantes de alegria.

Sem conseguir conter a curiosidade, abri os resultados dos exames para saber se estava tudo certo. Mesmo sem entender a linguagem médica, a impressão era que estava tudo dentro da normalidade, exceto por uma observação no ultra-som: “ausência de eco embrionário”. Aquela frase me chamou a atenção e me deixou preocupada, mesmo sem ter a menor ideia do que significava. Corri para a internet para pesquisar aquele diagnóstico. Sem conseguir achar nenhum site muito confiável, fiquei ainda mais apreensiva, pois o resultado das buscas indicava a possibilidade do embrião não ter se desenvolvido. Meu coração quase saía pela boca e eu não poderia agüentar calmamente todos aqueles dias que restavam para a consulta com o Dr. José Domingos. Assim, enviei um outro fax para a Dra. Tânia, que pediu a repetição do exame dali a uma semana.

Conforme a recomendação, depois de uma semana, compareci ao laboratório novamente, mas desta vez quem me acompanhava era a minha mãe. Infelizmente, um imprevisto causou ainda mais apreensão. Como tive que marcar o exame excepcionalmente de uma semana para outra, não havia vaga na unidade onde eu estava acostumada, assim o exame seria feito na mesma rede de laboratórios, porém em outra unidade. Sem saber corretamente como chegar ao destino, nos perdemos várias vezes no caminho e chegamos dez minutos atrasadas do horário agendado. Por esse motivo, o médico de plantão se recusou a realizar o exame. Confusa e assustada insisti veementemente com as atendentes para que o convencessem a fazer o ultra-som, sem resultado. Naquele momento os hormônios todos afloraram e comecei a chorar copiosamente, pois não agüentaria ficar mais uma semana sem saber se meu bebê estava bem. Vendo meu desespero, as atendentes tentavam achar uma vaga de urgência em todas as outras unidades da rede, sem sucesso. Minha mãe, por outro lado, ligava para outros laboratórios, mas também todos lotados. Quase três horas depois, a enfermeira chefe conseguiu uma vaga na cidade de Guarulhos, vizinha a São Paulo, para onde nos dirigimos imediatamente.

Chegando lá, ainda tivemos problema com a ficha médica, já que o meu convênio cobria apenas a cidade de São Paulo. Generosamente, vendo que estávamos com os nervos à flor da pele, o atendente autorizou a realização do exame, considerando que era um pedido de urgência e um encaminhamento de uma unidade pertencente ao município de São Paulo. Assim, era só aguardar o chamado do médico.

Poucos minutos depois, estávamos dentro do consultório realizando o exame. Para o meu conforto e alegria, estava tudo bem com o embrião. Uma semana depois do primeiro exame, ele havia se desenvolvido consideravelmente e embora tivesse apenas poucos milímetros de tamanho já era possível ouvir seu coração.

Ouvir o coração do meu bebê pela primeira vez foi uma sensação indescritível. Meu corpo flutuava. A sala rodava. Tudo em volta tinha ficado embaçado e eu só tinha olhos para aquele ponto pulsante no monitor do aparelho. A voz do médico parecia distante, meio em câmera lenta, sentia minha mãe segurando a minha mão, e como se todos os outros sons silenciassem, eu só ouvia os batimentos fortes e acelerados do meu... filho. Foi incrível.

Como se eu tivesse saído de um sonho doce e acordado para a realidade, fui despertada pela voz firme do médico:

- Não se preocupe. Está tudo bem com o seu bebê.

Aliviadas, eu e minha mãe voltamos para o carro para irmos para casa. Mas antes, eu quis ligar para o Daniel pra dar-lhe a boa notícia. Ao ouvir a voz doce do meu amado, chorei de emoção. Ao desligar o telefone, minha mãe pediu para que eu não chorasse tanto, pois segundo ela, gestantes não poderiam se emocionar com tanta freqüência, o que poderia fazer mal para mim e para o bebê. Assim, recomendou que eu tentasse me manter mais tranqüila.

Mal sabíamos quantas emoções viveríamos nesses meses de gestação...


Kelly Cecília Teixeira


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Capítulo 03 de 18

Descoberta

Sentia meu corpo diferente, meu reflexo no espelho parecia mostrar outra pessoa, meu coração palpitava e os pensamentos se soltavam da minha mente como bolhas de sabão. Não havia como saber. Restavam ainda diversos dias para o ciclo menstrual e eu tinha que esperar até lá para dar início à fase dos testes, se é que o ciclo atrasasse.


Certa noite, uma segunda-feira, eu e o Daniel, já recolhidos na cama para dormir, fazíamos nosso “Evangelho no Lar” como de habitual, e incumbida de fazer a leitura de uma página aleatoriamente, mentalizei a pergunta: “Senhor, será mesmo que estou grávida?”. Ao abrir o livro, foi tanta a minha surpresa que não agüentei a emoção, a garganta travou, a voz emudeceu e as lágrimas escorreram sobre o meu rosto. Sem saber o que se passava, o Daniel preocupado, perguntou o que havia acontecido. Virando meu rosto para ele, respondi: “Estou grávida!”. Espantado, ele perguntou como havia chegado àquela conclusão, e eu lhe mostrei a página de preces que dizia “Por uma criança que acaba de nascer”. Abraçamo-nos carinhosamente e lemos aquelas páginas bastante emocionados. Não foi preciso fazer nenhum teste para saber que estávamos esperando um bebê. O Senhor respondeu à minha pergunta naquela noite.

Ainda assim, esperamos ansiosamente o dia previsto para o ciclo. Com um dia de atraso, compramos o teste de urina, destes simples vendidos em farmácia. Ao ler as instruções, mais ansiedade: teríamos que esperar até o dia seguinte para utilizar a primeira urina da manhã. Fomos dormir mais cedo para que o outro dia chegasse mais rápido. Ao acordar, enquanto o Daniel preparava nosso café, corri ao banheiro para fazer o teste. Li novamente as instruções para que não houvesse erro. O teste acusou o que já sabíamos: eu estava mesmo grávida. A alegria foi imensa, mas ainda assim era apenas um teste de farmácia. Para não haver mais qualquer tipo de dúvida, era necessário fazer o teste de sangue. Imediatamente liguei para a minha médica para que ela preparasse formalmente o pedido do exame de sangue. No dia seguinte, fui buscar a guia médica e em seguida me dirigi ao laboratório. Fiz o exame e aguardei o resultado que estaria disponível na mesma noite pela internet. No horário previsto, o resultado estava pronto, mas causou ainda mais dúvida. Ao contrário do que eu pensava, não havia nenhum campo dizendo “positivo” ou “negativo”. Havia apenas um número e as semanas relativas de gestação para cada média desse número. Pelo o que nós podíamos entender, parecia positivo, e embora o Evangelho e o teste de urina indicassem a gestação, eu me sentia meio anestesiada e só acreditaria de verdade com a confirmação médica.

No dia seguinte, pela manhã, passamos um fax com o resultado para o consultório e ficamos no aguardo do retorno da Dra. Tânia, minha médica ginecologista na época. Fui para o trabalho e na primeira folga liguei para ter notícias. Assim que a secretária atendeu, eu logo me identifiquei:

- Alô, boa tarde, aqui quem fala é a Kelly, paciente da Dra. Tânia, tudo bem?

Mediante a sua resposta, se ainda havia qualquer dúvida, ela acabou naquele momento:

- Ah, sim. A grávida?

Espantada e com os olhos marejados d’água, respondi:

- Não sei! Estou mesmo?

- Está sim. Parabéns!


Kelly Cecilia Teixeira


sábado, 14 de janeiro de 2012

Capítulo 2 de 18

Preparação

Depois de um ano de casamento, a vontade de ter filhos aumentava a cada dia, mas também queríamos aproveitar um pouco mais a vida conjugal, sozinhos, antes de assumir a responsabilidade de ter um bebê em casa. Diante de uma decisão importante como essa pesava também a idade, afinal eu já estava com 30 anos, e como os planos sempre foram de ter mais de um filho, não podíamos adiar tanto. Mas a idade não era o único motivo para apressar a decisão, afinal a medicina avança a cada dia, e temos exemplos bem sucedidos de mulheres que optam por engravidar cada vez mais tarde. Era sim o sentimento de maternidade, que incrivelmente inexplicável aflorava naturalmente. A cada imagem de uma grávida, de um bebê ou simplesmente de uma roupinha, o meu corpo arrepiava e eu me derretia em suspiros e sorrisos. Eu me tornei uma telespectadora assídua de programas sobre gestantes, partos, cuidados com bebês e educação de crianças. Sabia que o momento estava cada vez mais perto. O Daniel também sempre quis ser pai e assim decidimos ter o nosso primeiro bebê em 2010.

O combinado então era de nos prepararmos para o feito. Faríamos todos os exames de saúde em 2009 a fim de estarmos prontos para a gestação. Além disso, devido ao pouco tempo de casamento e as novas perspectivas de aumento da família, decidimos fazer uma viagem importante antes de iniciarmos as tentativas. Foi uma viagem dos sonhos: passamos quinze dias na Europa, visitando museus, galerias e igrejas da Itália, da França e da Holanda, que serviram não somente para o encantamento pessoal, mas também para o crescimento profissional, já que ambos somos artistas plásticos. Mesmo durante a viagem, o sentimento de maternidade persistia e chegamos a pesquisar roupinhas de bebê que pudéssemos trazer de lá. Por fim, compramos um urso de pelúcia na Bélgica, país onde passamos apenas um dia a caminho da Holanda.

Teddy era o nome do urso. Ele nos acompanhou durante o restante da viagem e logo que chegamos em casa, ficou decorando aquele que seria o quarto do futuro bebê.

Depois de diversas consultas e exames, tanto eu quanto o Daniel estávamos aptos a iniciar a jornada. Paramos com todos os métodos contraceptivos que usávamos até então e a partir daquele momento estávamos a mercê da vontade de Deus. Eu estava tão ansiosa, que dia-a-dia pesquisava na internet reportagens, estudos, tabelas sobre o funcionamento do ciclo menstrual, dias férteis, concepção etc.

Embora a ansiedade devorasse meus pensamentos, eu tinha duas incumbências iniciais: tentar emagrecer antes da gestação, pois estava fora do peso adequado; e tomar a vitamina de ácido fólico, atualmente recomendada para todas as candidatas a gestante.

Não tive tempo hábil para nenhuma das duas...

Kelly Cecília Teixeira

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Capítulo 1 de 18

Casamento

Chovia torrencialmente naquela tarde de verão. Depois de três anos de namoro, eu e o Daniel nos casamos sob votos de amor, harmonia e alegria. Segundo os convidados, a chuva trazia sorte.


Kelly Cecília Teixeira

Prefácio

Queridos amigos valorosos, Kelly e Daniel.

Especialmente você Kelly, que nos dá essa linda lição de Vida amando e servindo a Deus, como Jesus ensinou. Sua história é comovente e sua grandeza de alma faz com que você expanda seu amor para ajudar outras mães. Não somente aquelas que vivem experiências semelhantes, mas todas as mulheres a quem Deus confia seus Filhos para amá-los, pois no dizer de Meimei “só o Amor educa os Filhos de Deus.”

Quanto você ajudou o Miguel, esse corajoso? Não sei.
Mas acredito nos milagres do Amor.

Sua vivência, bem como a do Daniel, com certeza mudaram a caminhada desse espírito que mereceu de Deus a Santa oportunidade de ser filho de dois corações tão conscientes de seu papel no Mundo.

Queridos, com certeza a Família Humanidade deste Planeta iluminou-se com a contribuição de vocês, não somente em favor do Miguel, mas em favor de todas as mães, especialmente daquelas que ainda não descobriram seu papel junto aos filhos que Deus lhes concedeu.

Obrigada por terem permitido que eu aprendesse tanto com vocês.

Que Deus os abençoe. Gente como vocês mudam o Mundo, pois vivem o Amor em plenitude.

Com respeito e profundo carinho,


Gilvete

Introdução

Essa não é só mais uma história entre pais e filhos, é sobretudo, uma história de amor. Não quero com esse depoimento me engajar a nenhuma luta contra ou a favor de nada. Quero apenas contar a nossa história. A história que eu escolhi viver.

Não tenho nenhuma pretensão literária, portanto, o texto aqui escrito tem o formato de um depoimento, sem que haja nenhuma erudição na escrita. Singelo. Simples. É apenas a fala vinda de uma mãe, que vivenciou a fundo o que todos chamam de amor incondicional.

Kelly Cecília Teixeira


Agradecimentos

Ao meu filho Miguel.





Como em tudo na minha vida e especialmente nesse momento, só é possível agradecer. Gostaria de poder demonstrar a minha mais profunda gratidão a todos que embarcaram comigo nessa história:

À minha família, que sempre me apoiou em todas as decisões;

Aos meus amigos, que me sustentaram a cada passo. Não preciso, contudo, enumerá-los aqui, pois cada um sabe da sua fundamental contribuição;

Ao Dr. José Domingos, pela competência e humanidade;

Às minhas queridas psicólogas Eunice, Teresa e Del Mar, além de todos os integrantes do grupo da terapia, que me fizeram enxergar a beleza dessa história;

À Rosana, pela luta, pela perseverança e pelo exemplo;

À amiga Gilvete, por sua sabedoria e orientação;

Ao Daniel, amor da minha vida e meu porto-seguro;

E finalmente, aos mentores e amigos espirituais, e à Jesus, que me conduziram em seus braços em todos os momentos.