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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Capítulo 11 de 18

A decisão

Da consulta com o médico especialista até o retorno com o Dr. José Domingos, passaram-se algumas semanas. Nesse meio tempo, a tristeza tomou conta de mim. Apesar disso, voltei ao trabalho e tentava manter a minha rotina normalmente. Ao contar para algumas pessoas mais próximas, elas também se tornavam cúmplices e todas demonstravam solidariedade. Como eu ainda não havia decidido o que fazer, ninguém tomava partido também. Todos diziam que me apoiariam em qualquer decisão que eu tomasse. Também recebi visitas de alguns familiares e a reação era quase sempre a mesma.

Apenas duas pessoas se posicionaram claramente e me aconselharam sobre o que fazer. Uma a favor da continuidade da gestação e a outra contra. A favor, foi minha tia Marina, irmã da minha mãe. Do alto da sua simplicidade, com os olhos marejados, ela me disse com todas as letras:

- Kelly, não tira esse bebê! Não faça isso! Eu tenho fé, do fundo do meu coração, de que tudo dará certo e ele nascerá perfeito!

Contra, foi um colega de trabalho, uma pessoa igualmente simples, que alegava uma situação parecida. Ele e a esposa tinham perdido a segunda filha, num aborto espontâneo aos 06 meses de gestação. Ele dizia que ao ver a filha praticamente toda formada, foi uma imagem inesquecível e incrivelmente dolorosa. Ele acreditava que interrompendo no início da gestação eu não passaria por essa situação.

Eram posições contrárias, mas ambas faziam sentido.

Os dias tinham tornado-se longos, eu havia perdido a capacidade de concentração, não conseguia dormir e quando dormia tinha pesadelos. Um deles inclusive, me fez acordar aos gritos no meio da noite. Sonhei que estava no quarto de uma casa desconhecida, deitada na cama e brincando com uma criança. Pela fresta da porta tinha percebido um vulto. Quando observei novamente vi uma figura horripilante. Era uma mulher, vestia um sobretudo e usava uma máscara branca parecida com a do fantasma da ópera, só que cobria todo o rosto. Ao me ver no quarto, ela se aproximava e apontava uma arma na minha direção. Desesperada, a minha reação foi primeiramente proteger aquela criança, uma menina, por volta dos 04 anos. Fiquei encurralada na parede do quarto, e quando calmamente aquela mulher puxou o gatilho, eu acordei com um berro. O Daniel acordou também, assustado, e antes que eu conseguisse contar o que tinha sonhado, ele me trouxe um copo de água com açúcar. Demorei a pegar no sono novamente nessa noite e naqueles que a sucederam.

A minha indecisão era baseada no sentimento de medo. Um medo profundo. O amor que eu sentia pelo meu bebê era de fato incondicional. Mas ao fechar os olhos era como se eu visse flashes dos rostos dos médicos e aquelas vozes graves me atormentando:

“...você pode perder o útero...”

“... você terá complicações na hora do parto...”

“... dificuldade de respiração e locomoção...”

“... vida vegetativa...”

“... injetamos um líquido no coração dele...”

“...”

“...”

Pela primeira vez na vida tive medo de morrer.

E sentia todo o peso do mundo nas minhas costas, pois somente eu podia decidir. Pedia a Deus um sinal. Pedia para que Ele perdoasse os meus maus pensamentos, mas pedia também que ele tirasse aquele medo do meu peito.

No dia marcado, eu e o Daniel voltamos ao consultório do Dr. José Domingos. Minha mãe nos acompanhava. Fomos cheio de dúvidas, mas podíamos imaginar as respostas. Tivemos uma longa conversa, mas apenas alguns trechos ficaram registrados na minha memória.

Eu e o Daniel estávamos sentados, e minha mãe permanecia de pé. Depois de algumas perguntas iniciais, lembro-me da minha mãe perguntando se eu corria algum risco.

- Só pelo fato de estar grávida, ela já corre algum risco, mas nenhum além do que uma gestante qualquer. É claro que será uma gestação especial, e por isso será necessária uma atenção diferenciada. Da mesma forma que outros casos especiais como mulheres com pressão alta, diabetes etc., e que levam a gravidez numa boa.

E continuava:

- Caso optem pela interrupção, quero lembrar que vocês devem fazer o pedido formal à justiça, e que se for aprovado, vocês serão encaminhados para um hospital público, realizando o procedimento com o médico indicado.

Além de todo o drama que seria caso optássemos em não levar adiante a gestação, saber que eu seria encaminhada para um hospital da rede, conhecendo a realidade da saúde pública no nosso país e ainda ser atendida por alguém que eu nem conheço, me fez gelar ainda mais. Nessa hora, minha mãe perguntou:

- Mas nesse caso, ela não poderia indicar, já no pedido judicial, o nome do senhor e do hospital que ela deseja fazer o procedimento?

E o Dr. José Domingos foi categórico:

- Eu não faço abortos.

E continuou:

- Além disso, não é possível indicar o hospital porque poderia parecer favorecimento.

Silêncio na sala. Após alguns longos segundos, minha mãe disse que não tinha mais nada a perguntar e pediu licença para sair da sala, deixando-nos a sós com o doutor.

Mais algumas perguntas e finalmente dei um ultimato:

- Mas doutor, todos ficam dizendo que somos nós, ou melhor, sou eu que tenho que decidir, mas eu preciso de ajuda! Afinal, o senhor, como médico, o que me indica?

Ele deu um sorriso maroto e perguntou:

- Você quer saber como médico ou como pessoa?

E eu sem graça respondi:

- Er... os dois. Os dois são importantes, não é?

E ele nos disse a sua visão.

- Como pessoa... Não sei em que vocês acreditam, mas eu acho que se o bebê de vocês veio dessa forma é sinal de que tem um porquê. Alguma missão, alguma prova que ele e vocês devem passar. Até eu, como médico, se estou envolvido nessa história, é por que tenho algo a aprender. Sabe, eu sou espírita...

Nessa hora, antes que ele continuasse, eu e o Daniel nos entreolhamos, sorrimos e interrompemos com um suspiro aliviado:

- Nós também somos!

- Pois então, vocês sabem que situações como essas são oportunidades dadas a espíritos que precisam de ajuda. Agora, como médico, a gente indica a interrupção devido a toda a carga e a pressão psicológica que um caso assim traz à mãe.

- Mas meu medo é a perda do útero...

Espantado, ele perguntou:

- Mas é somente isso que está colocando você em dúvida?

- Sim...

- Ah não... Quanto a isso, deixa comigo! Se for isso que te impede de continuar a gestação, pode ficar sossegada!

Quando ele disse “deixa comigo”, trazendo toda a responsabilidade pra si, senti uma confiança incrível. Aquelas palavras chegavam até os meus ouvidos envolvidas de esperança e de alívio.

- Então o senhor topa essa empreitada com a gente?

E ele nem titubeou:

- Vam’bora!

Naquela hora, tive a mesma sensação de quando descobri que estava grávida. Uma alegria imensa invadiu o meu peito e era como se eu estivesse começando a gestação toda de novo. Foi aí que eu aprendi o que era ser uma mãe de verdade.


Um comentário:

  1. Oi Kelly! Tenho acompanhado emocionada seu blog. Admiro muito sua coragem, e também sou espírita e teria feito o mesmo, teria trazido esse anjinho ao mundo para evolução. Concordo com o que sua amiga disse, se vocês foram escolhidos para essa tão difícil missão, é porque são seres iluminados e capazes de suportar.

    Aguardo ansiosamente o próximo capítulo.
    Bjs
    Cintia

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