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sábado, 28 de janeiro de 2012

Capítulo 09 de 18

O diagnóstico

Era dia 15 de julho de 2009. Uma quarta-feira. Conforme combinado com o Dr. Leonardo, voltamos ao laboratório para repetir o exame. Dessa vez, fomos eu e minha mãe. Como de praxe, esperamos um pouco até sermos chamadas, e como não havia hora marcada, outras gestantes passaram na minha frente.

Ao entrar na sala, entreguei outro DVD para a assistente, deitei na maca e me preparei. O doutor entrou, me reconheceu e iniciou a ultra-sonografia. Enquanto ele observava atenciosamente em silêncio, eu e minha mãe comentávamos sobre a graça que o bebê parecia estar fazendo. Continuava mexendo bastante. Após alguns minutos, o Dr. Leonardo interrompeu novamente o exame e disse que seria necessário fazer a ultra-sonografia endovaginal, que é interna, pois não estava conseguindo visualizar direito. Limpei o gel da minha barriga, fui até o banheiro para tirar minha calça e calcinha e colocar o avental. Voltei, deitei e começamos tudo de novo. Após mais alguns longos minutos em silêncio, ele disse:

- Kelly, não tenho uma boa notícia para dar a você...

Naquele instante, meu coração gelou. Antes que ele continuasse a frase, em uma fração de segundos, milhares de coisas passaram na minha cabeça. Uma delas foi que meu bebê fosse portador de alguma síndrome, que ele tivesse necessidades especiais. Ao mesmo tempo em que imaginava isso, meu coração dizia “ok, eu o amo, vamos cuidar dele”. Mas o diagnóstico seria ainda mais angustiante. Calma e pausadamente, o doutor começou a nos explicar o que estava acontecendo:

- Kelly, o seu bebê não formou os ossinhos do crânio, o que chamamos de acrania. Por esse motivo, o sistema nervoso central fica exposto diretamente ao líquido amniótico, levando à anencefalia, que é a ausência de partes do cérebro. Esse tipo de malformação, infelizmente, é incompatível com a vida.

Eu estava atônita, não conseguia dizer uma palavra. Séria, sentia apenas meus olhos arregalados e minhas mãos frias. Sentia um vazio e não sabia o que pensar. Nesse momento, senti minha mãe segurando minhas mãos, e a vi chorando com o rosto virado. Voltei meu olhar novamente para o médico e percebendo a minha quietude desconfortante, ele continuou:

- O fechamento do tubo neural acontece nas primeiras semanas de gestação, em um período em que provavelmente você nem soubesse que estava grávida. Pode ser ocasionado pela deficiência de ácido fólico, o que é sempre o mais provável, mas também pelo contato com produtos químicos, medicamentos ou até fatores ambientais como poluição intensa, por exemplo. Vide os casos freqüentes na cidade de Cubatão, em São Paulo, há muitos anos, onde existiam muitas indústrias.

Eu ainda estava sem fala. Não sabia o que dizer e o que perguntar. Aquilo não estava no roteiro, não fazia parte da minha lista de dúvidas. Não sabia que podia acontecer comigo. Diante do meu silêncio, ele ia falando.

- Pelo que posso observar, o restante do corpo dele está se desenvolvendo normalmente, o coração bate regularmente, o tamanho do tórax está normal, assim como o fêmur e demais partes. Em casos assim, existem duas opções. Você pode optar pela interrupção da gestação ou a continuação até o final. No caso da interrupção, é preciso entrar com um pedido formal na justiça, pois mesmo sendo uma malformação grave, não é permitido realizá-la no Brasil. Os dois únicos casos em que é permitido realizar aborto são quando a mãe corre risco de morte ou em caso de estupro. Porém, se desejar continuar com a gestação, você não corre risco, mas pode ter acúmulo de líquido amniótico, o que deixará sua barriga maior do que o normal, e você pode ter dificuldade de respiração e locomoção. Se optar em ter o bebê, você pode ainda doar seus órgãos.

Quando finalmente consegui falar, ainda atordoada, perguntei se existiria algo a fazer, algum tipo de cirurgia, de medicamento etc. Ele foi enfático.

- Infelizmente, não.

Ao concluir o exame, ele se prontificou em conversar com o Daniel se fosse necessário. Desejou seus sentimentos e se colocou à disposição. Levantei da maca ainda meio perdida. Minha mãe passava a mão na minha cabeça e chorava. Eu continuava sem saber o que dizer. Estava angustiantemente quieta. Um silêncio de alma. Sentia meu corpo pesado, meus braços moles. Mas tive força para me levantar e ir até o banheiro me trocar. Quando fechei a porta e me olhei no espelho, foi como se todo o desespero que percorria meu corpo circulasse em cada célula e desembocasse em meus olhos. Foi um encontro profundo, como se observasse não só os meus olhos, mas a minha essência, gritando. Daí para o choro foi um segundo. Chorei desesperadamente, parada, me olhando no espelho. Era como se todos os meus sonhos tivessem ruído tijolo por tijolo. Quase não conseguia respirar. Minha garganta travou e meu rosto e roupa começavam a encharcar. Após eternos segundos, consegui me vestir e sair de lá.

Saí calmamente ajudada pela minha mãe e pela assistente. Voltamos para a sala de espera e sentamos. Minha mãe perguntou se queria que ela ligasse para o Daniel. Eu olhava pra ela, mas não entendia o que ela estava falando. Só respondia: “não sei”. E de fato, eu não sabia de mais nada. Não sabia se levantava, se saía, se ficava. Ela insistiu. Aí eu disse que não, que contaria em casa. Segundos depois, mudei de ideia. Melhor era o médico conversar diretamente com ele. Mas o que diria no telefone? Porque a urgência? Tomei coragem e liguei.

- Dan, nosso bebê não está bem, o médico quer conversar com você. Você pode vir?

Enquanto esperávamos a sua chegada, ficamos ali, sentadas. Eu olhava para o chão e intercalava entre um choro baixinho ou uma lágrima que insistia em escorrer pelo meu rosto. O silêncio nos dominava. Cabisbaixa, percebia os olhares assustados e curiosos dos outros pacientes e observava invejosamente as outras grávidas de barriga empinada.

Foram longos e tortuosos minutos até o Daniel chegar. Quando o vi apontando na escada, perdi a respiração e meus olhos encheram-se de água. Ao abraçá-lo, explodi e chorei intensamente. Eu o sentia passando a mão entre os meus cabelos e dizendo no meu ouvido: “calma, está tudo bem”.

Ao me acalmar, sentamos novamente. Minha mãe nos deixou a sós e eu tive a dura incumbência de lhe contar o que acontecia. Falei da malformação, do seu desenvolvimento, e terminei dizendo o pior, que o nosso bebê não sobreviveria ao nascimento. Ao dizer isso, o Daniel levou as mãos ao rosto e também chorou, como eu nunca o havia visto chorar antes. Se meu coração já estava partido, ele foi esmiuçado naquele momento. Éramos cúmplices dessa história.

Pouco tempo depois, já avisado da chegada do Daniel, o Dr. Leonardo nos chamou de volta ao consultório e explicou detalhadamente o diagnóstico para o Daniel. A sua reação foi exatamente como a minha: silêncio. E quando ele conseguiu falar, fez a mesma pergunta. Tendo a mesma resposta. O médico se colocou novamente à disposição e nos desejou boa sorte.

Do laboratório, tentamos falar com o Dr. José Domingos, mas como ele estava fora do consultório, a secretária fez a intermediação, e a orientação foi que procurássemos o Hospital Santa Helena no mesmo dia e fôssemos ao outro consultório dele na sexta-feira.

Antes de irmos para o hospital, fomos pra casa. Chegando lá, fui direto pro meu quarto e deitei. Chorei tanto que minhas pálpebras incharam e quase não conseguia abrir meus olhos. Me enrolei no edredon e contorci meu corpo até que eu mesma ficasse em posição fetal. Sentia uma dor que não tinha lugar certo. Somente doía. Sentia o Daniel atrás de mim passando a mão na minha cabeça tentando me consolar. Minha cabeça carregava um turbilhão de imagens, das mais doces às mais trágicas e todas elas me faziam chorar ainda mais. Lembro-me da minha mãe me trazendo um chá, que ficou sobre o criado-mudo quase até esfriar. Não conseguia dizer uma palavra. Não tinha forças e nem vontade. Foram horas do mais profundo desespero. Quando finalmente consegui falar, as únicas palavras que ousaram sair da minha boca foram “perdoa-me, meu filho, perdoa-me”. Entre as coisas que se passavam na minha cabeça, martelava a dúvida: “o que eu fiz de errado?”. Fiquei tentando recapitular todas as minhas ações e “será que foi algum remédio que eu tomei?”, “será que foi algum esforço que eu fiz?”, “será que é porque estou gorda, sem saúde?”... enfim, sentia uma culpa sem saber porquê. Chorei até perder a energia e adormecer.

Um tempo depois, recobramos as forças e fomos até o hospital. Estava cheio e tivemos que esperar muito até sermos atendidos. Finalmente, quando fomos chamados, era como se uma ponta de esperança surgisse e pudéssemos ouvir que aquele diagnóstico estava equivocado. Mas o médico foi curto e grosso.

- Nesses casos, o mais indicado é realizar um aborto terapêutico.

Terapêutico?
Ainda assim, solicitou um novo laudo para confirmar o diagnóstico.

Voltamos pra casa e eu voltei para a minha cama. Nesse meio tempo, meu pai veio até a minha casa, entrou no meu quarto, passou a mão na minha cabeça e voltou pra sala. Mais tarde, acordei com a visita dos pais do Daniel e do seu irmão. Apesar de estar mais calma, não hesitei em cair no choro novamente ao abraçar minha sogra. Lembro-me do olhar assustado do meu cunhado e sereno do meu sogro.
Naquele instante, lembrei de uma história que havia lido uma semana antes na casa deles. Era uma história aparentemente tão fantástica, em todos os sentidos da palavra, que não tinha a menor relação comigo no momento em que a li. Mas que agora fazia todo o sentido. Era a história de uma menina que enviava uma mensagem do plano espiritual, agradecendo a oportunidade dada pelos pais em trazê-la ao mundo mesmo com anencefalia. E que por causa disso, estava se recuperando muito bem e se preparando para uma próxima encarnação como uma criança saudável.

Não podia acreditar que isso também estava acontecendo comigo.

Conversamos muito. Aliás, eu mais ouvia do que falava. E dado um certo momento, resolvemos ler o
evangelho. Fizemos uma prece e nos despedimos.

Kelly Cecilia Teixeira


7 comentários:

  1. Estou aqui soluçando de tanto chorar.......Kelly e Dani......como vcs são fortes, iluminados e vitoriosos......amo muitão vcs dois!!!!!

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    1. Oi, querida! Eu também choro toda vez que leio esse trecho... foi um momento muito difícil e emocionante, mas a boa notícia é que o final dessa história, apesar da dor, é feliz. Um beijo!

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  2. Essa história já tem me emocionado, mas esse capítulo, sem palavras... eu admiro muito vocês!!!

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    1. Pois é... de fato, esse é um dos momentos mais emocionantes, mas outros virão...rs. Beijos.

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  3. Foi a pior dor que senti em toda a minha vida!Duplamente....pelo meu neto e por vc minha filha...Eu que vivo pelos meus dois filhos e amo-os incondicionalmente,e nesse momento estar de mãos atadas sem poder fazer nada?????¨MEU DEUS¨já pedi perdão inúmeras vezes por minha revolta nessa hora,e torno a pedir aqui lendo esse capítulo,revolta essa em pensar que havia muitas das que se dizem mulher,terem jogado seu filho em lixeiras,em rios,na rua....e minha filha e meu genro que queria tanto esse bêbe? Mas depois refleti,e diante mesmo do meu sofrimento entendi que na imposição das mãos de ¨DEUS¨não tínhamos o poder da escolha,e que ¨DEUS¨havia escolhidos pessoas especiais para gerar um serzinho tbm especial e cheio de luz...e isso me confortava...

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  4. Nossa é muito emocionante, não consigo terminar de ler de tanta vontade de chorar!
    Vocês são muito fortes!

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  5. Chorando,muito emocionante,a parte em que diz que leu uma história que até aquele momento não fazia parte da sua vida mais que passaria a fazer,Deus sabe perfeitamente onde coloca seus anjos especiais.

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